sexta-feira, 4 de março de 2011

Eu vi novela demais




‘Tudo pode ser. Se quiser, será. Sonhos sempre vêm pra quem sonhar.’ Quem foi criança na década de 80, conhece bem o trecho dessa música da Xuxa que junto com o filme Lua de Cristal foi um enorme sucesso na época. Bastava a gente escutar a primeira frase da letra para já começar a cantar, ou melhor, berrar com nossas vozes estridentes. Porque éramos crianças inocentes e, sim, acreditávamos que tudo que nós quiséssemos o cara lá de cima ia nos dar. Mas não foi só a Xuxa que nos bombardeou com mensagens otimistas de que o mundo é um lugar legal para se viver. A família feliz dos comerciais de margarina. Ou os modelos de corpos esculturais andando de jet ski e sorrindo um sorriso que quase nos cega de tão branco nos comerciais de pasta de dente. As novelas com seus finais edificantes em que os bonzinhos encontram sua alma gêmea e os mauzinhos se ferram (com raras exceções, caso de Vale Tudo, por exemplo). E isso não é coisa do passado. Vivemos um momento onde a sociedade tenta nos enfiar cada vez mais goela abaixo o retrato desse mundo perfeito, onde você pode tudo. Um mundo que tem sua imagem traduzida em casais tão perfeitos quanto insossos cuja representação máxima do politicamente correto estampa a capa da Veja.

Mas você que é filho de pais separados ou então assistiu por diversas vezes sua mãe apanhar do seu pai alcoólatra, você que não se lembra quando foi à última vez que foi ao dentista e já está preocupado com essa dor de dente que te acompanha a um bom tempo, que nunca andou de jet ski, que nunca freqüentou a ilha de Caras, que pega o metrô lotado e chega em casa à meia-noite para acordar no outro dia de manhã e repetir a mesma rotina de todos os dias, onde é que você se encaixa nessa alegria toda? Será que você se encaixa? Mas como assim? Você não é feliz? Então você é uma aberração! Por favor, não demonstre seu descontentamento com um mundo tão perfeito! Você não será bem-vinda nesse planeta! Acredite. Afinal, o mundo é feito de gente brava, que levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima.

Não é bem isso que a música de hoje fala e se você já comprou seu abadá e tirou o pé do chão para curtir o cara caramba caraô, acho melhor parar a leitura por aqui porque eu não quero estragar o carnaval de ninguém. Agora, se você é uma pessoa reflexiva e, às vezes (ou quase sempre), se sente um extraterrestre por isso, vem comigo que no caminho eu explico.

Esse sentimento de inadequação é mais comum do que a gente pensa na música brasileira e está presente na letra de várias de nossas canções. Algumas me vêm à cabeça agora: Pais e Filhos (Ela se jogou da janela do quinto andar/Nada é fácil de entender) e Via Láctea (Mas não me diga isso/Hoje a tristeza não é passageira/Hoje fiquei com febre a tarde inteira) da Legião Urbana, Lágrimas e Chuva do Kid Abelha (Será que existe alguém ou algum motivo importante/Que justifique a vida ou pelo menos esse instante?), Trancado da Ana Carolina (Perder é não ter a bússola/É não ter aquilo que era seu/E o que você quer – orientação) e Pierrot do Brasil da Marina Lima (Sim, eu resolvi me ausentar/Para ocultar a minha dor/Fugi, menti/Talvez por pudor).

Mas escolhi especialmente essa música para ‘decifrar’ porque considero seu intérprete um dos caras mais espetaculares do nosso pop, um compositor brilhante que, ao lado de Antonio Cícero e sua irmã Marina, expressa de uma maneira incisiva e poética nossas angústias modernas, contemporâneas e urbanas. Sim, estou falando do nosso controverso Lobo Mau, o senhor João Luiz Woerdenbag Filho, também conhecido como Lobão. E a música de hoje é a terceira faixa do álbum Sob o Sol de Parador de 1989. Já sabe qual é? Não? Mas tenho certeza que você já a cantarolou diversas vezes nas madrugadas da vida: ... A maior expressão da angústia pode ser a depressão/Algo que você pressente/In-de-fi-ní-vel/Mas não tente se matar/Pelo menos essa noite não.

Não é estranho quando você lê a letra ao invés de cantar e percebe o quanto ela é pesada? Pois assim é Essa Noite Não, um soco no estômago, sem firulas, sem meias palavras, direta, seca.

Quando falei acima que Lobão ao lado de Marina e Antonio Cícero era um cara que falava das questões urbanas, posso citar como exemplo, a primeira frase da música: A cidade enlouquece sonhos tortos. Assim como Marina que se utiliza de gírias e expressões do cotidiano das grandes metrópoles (Como pôde queimar o nosso filme? – Acontecimentos), Lobão nos situa num espaço determinado e, no caso de Essa Noite Não, das grandes cidades que enlouquecem, para não dizer destroem, os sonhos tortos de quem ousou sonhar. Quantos não são os sonhos dos que despertam todos os dias em São Paulo? Dos mais ‘simples’ como viver um grande amor aos mais ‘complexos’ como ser promovido na empresa? E quantos sonhos vão sendo abandonados porque, na verdade, nada é o que parece ser? Quantas pessoas que queriam ser outra coisa qualquer que não a que são, e viver outra vida que não a que vivem? E por isso vão enlouquecendo calmamente, pois essa loucura que fala a música, não é a loucura do delírio, do êxtase, do devaneio lírico. É a loucura que vem acompanhada do vazio, da falta de perspectivas, da queda de quem sonhou alto e se espatifou. É a loucura dos insones que, quando conseguem dormir, é á base de calmantes. É a loucura do obsessivo-compulsivo, do neurótico, do histérico, do deprimido. Pessoas que nos cercam todos os dias, mas que no clarão da tarde, preferimos fingir que elas não existem. Fingimos não ter ouvidos para suas lamentações. Quem aqui nunca ouviu alguém dizer: ‘Ai, detesto gente deprimida, gente que nem chegou aos 30 e já desistiu de viver.’? Para os autores dessa frase, tenho um conselho. Procure se conhecer um pouco mais. Não é porque você detesta os deprimidos que não quer ouvir suas lamúrias. Talvez seja porque você tenha receio de se identificar com todos aqueles tormentos. Então, é mais fácil varrer a sujeira para debaixo do tapete e não se aprofundar muito.

Caio Fernando Abreu, escritor que você que freqüenta esse espaço sabe que eu adoro, escreveu em uma de suas cartas: “Será que, à medida que você vai vivendo, andando, viajando, vai ficando cada vez mais estrangeiro? Deve haver um porto" Sinceramente, Caio, não sei se existe esse porto, esse lugar onde nos sentiríamos sempre aconchegados. Segundo algumas correntes psicanalíticas, o desamparo é uma questão inerente ao ser humano, carregamos esse cachorro que nos rói por dentro desde o momento em que abandonamos o útero materno que, talvez, seja o único lugar em que nos sentimos totalmente protegidos. Digo talvez, porque não tenho nenhuma recordação da minha estadia no útero materno. E conheço algumas pessoas que se pudessem nunca teriam saído de lá.

Mas como diria Fernanda Abreu em Dois, já comentada aqui, seguir é o que marca o beat do meu coração. E acho que é isso que a vida pede da gente todos os dias. Coragem. Estar pronto. Para o quê exatamente nunca se sabe. Mas é preciso ter a mente e o corpo sãos, liberdade de escolhas e de pensamentos. Como diria Moska em A Seta e o Alvo: então me diz qual é a graça de já saber o fim da estrada quando se parte rumo ao nada? Concordo com Clarice Lispector quando nos disse que ‘viver, meus caros e caras, é mais difícil que morrer jovem’, mas talvez também concorde com Luis Fernando Veríssimo quando ele diz que ‘o mundo não é ruim, só é mal freqüentado’. E espero que você que aqui me lê, não tente se matar, pelo menos essa noite não.

Essa Noite Não

Composição: Lobão / Bernardo Vilhena / Ivo Meirelles / Daniele Daumérie

A cidade enlouquece sonhos tortos
Na verdade nada é o que parece ser
As pessoas enlouquecem calmamente
Viciosamente, sem prazer

A maior expressão da angústia
Pode ser a depressão
Algo que você pressente
Indefinível
Mas não tente se matar
Pelo menos essa noite não

As cortinas transparentes não revelam
O que é solitude, o que é solidão
Um desejo violento bate sem querer
Pânico, vertigem, obsessão

A maior expressão da angústia
Pode ser a depressão
Algo que você pressente
Indefinível
Mas não tente se matar
Pelo menos essa noite não

Tá sozinha, tá sem onda, tá com medo
Seus fantasmas, seu enredo, seu destino
Toda noite uma imagem diferente
Consciente, inconsciente, desatino

A maior expressão da angústia
Pode ser a depressão
Algo que você pressente
Indefinível
Mas não tente se matar
Pelo menos essa noite não

Dedico esse post à todos os chicleteiros desse meu Brasil Brasileiro.


4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Bravo, bravíssimo!! Um dos melhores post até agora. Veio em momento oportuno, junto à folia (e a euforia) desmedida do carnaval. A superficialidade humana vem à tona e pra mim é a maior expressão da angústia.

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  3. Belas sitações. Belo texto. Oferece vários caminhos. Adorei o blog. Continue que eu continuo.

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  4. Vc escreve bem demais, seu texto é gostoso e leve de ler, como um sorvete de morango com chantilly. Mas nas entrelinhas é que o bicho pega. Marizabel Pacheco

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