segunda-feira, 11 de julho de 2011

Que lugar me pertence?


Nasci numa cidade que, de tão pequena, não está nem no mapa e quando digito seu nome no Word o corretor ortográfico logo a sublinha de vermelho. O nome da minha (?) cidade é Ervália, fica na Zona da Mata Mineira, a 700 metros do nível do mar e tem como vegetação principal os inúmeros e viçosos cafezais, estando por sinal, numa das principais zonas cafeeiras do Brasil. Tudo isso eu aprendi na escola, na aula de geografia. Mas o que ninguém nunca me explicou é porque eu nunca realmente pertenci àquele lugar, mesmo tendo nascido e morado ininterruptamente ali até os meus 17 anos.

O fato é que eu sempre soube que havia um mundo muito maior do que os meus olhos podiam ver. Era o mundo que eu via nas novelas da Globo, onde existia um Rio de Janeiro idealizado com suas praias descoladas da Zona Sul carioca. E eu lá do meu canto, matutava: isso sim é lugar de gente de verdade morar. Subentende-se por gente de verdade, pessoas que fazem a roda do mundo girar, que escrevem seu nome na história. Não sei por que, mas sempre achei que elas estavam nas cidades grandes. Até hoje penso um pouco assim. Só para ilustrar, alguns dias atrás, eu e minha amiga Linda Imaculada – que é santista de nascença, mas não entende nada de futebol – estávamos prontos para mais uma noite de ferveção quando decidimos pegar um táxi. Só que era justamente a final do campeonato Taça Libertadores da América e moramos bem perto do estádio do Pacaembu onde estava acontecendo a partida. Resultado: pegamos um engarrafamento infernal. O motorista estava com o rádio ligado para escutar a partida e bem na hora que o locutor anunciou a vitória dos Santos, nós estávamos parados em frente o estádio olhando para o seu letreiro. Então me virei para Linda Imaculada, mesmo não gostando de futebol e só sabendo que o adversário do Santos era um time uruguaio e disse: Linda Imaculada, estamos vivendo um momento histórico! Daqui a dez anos se o seu marido santista te perguntar onde é que você estava quando o Santos ganhou a Libertadores da América de 2011 você de imediato se lembrará desse instante.

Cito esse acontecimento breve e banal, apenas para mostrar que, na minha opinião, as possibilidades são inúmeras numa grande cidade. E ninguém é inocente quando o sol se põe em São Paulo. Ou como diria Rita Lee numa belíssima letra gravada por Zélia Duncan: ‘Na medida do impossível /Tá dando pra se viver/Na cidade de São Paulo/O amor é imprevisível/Como você e eu’. Ou como disse Marina no seu último disco em #SP Feelings: tanta perspectiva nova, ímpar, que só as cidades grandes sabem produzir.

Talvez tenha sido por isso que vim parar em São Paulo. Porque viver é ter curiosidade e já que tudo me interessa e tudo tem mistério, quando me cansei de rezar a mesma missa todos os dias, dei meu grito de liberdade e bradei a quem quisesse ouvir: Eu não sou daqui! Como o autor dessa música de hoje, parti sem olhar pra trás.

Gravada em 1991 por uma paraibana arretada, uma leonina de juba exuberante, que também foi desbravar o mundo deixando Conceição da Paraíba rumo ao Rio de Janeiro. Na época ela fazia faculdade de economia, mas o chamado da arte foi mais forte e ela se juntou a um grupo de músicos mambembes, o Quinteto Violado, que fazia algumas apresentações na sua cidade. Arrumou sua trouxinha e pôs o pé na estrada com o bando. Quando foi avisada pela trupe que tinham chegado na Cidade Maravilhosa, pôs a cabeça pra fora de uma Kombi velha para olhar a paisagem e se deparou com a imagem nada agradável da Avenida Brasil. “Ôxe! Mas esse não é o Rio de Janeiro que eu via nas novelas! O Rio que eu via era bonito!” Passada a primeira impressão, ela então pôde conhecer com mais calma a Zona Sul carioca, não sem antes passar por alguns perrengues (até mesmo fome, segundo ela própria) já que tinha muito pouco ou nenhum dinheiro naquela época. Mas como a sorte favorece os audaciosos, acabou conhecendo Alceu Valença, Carlos Vereza e outros artistas que freqüentavam o Baixo Leblon. Se enturmou rápido, foi parar no musical A Ópera do Malandro e sua estrela começou a brilhar. Ela que já foi chamada de Nina Hagen da Caatinga, de Madonna do Agreste, de Tina Turner do Sertão, de Flor da Paraíba, é também conhecida como Elba Ramalho.

Voltando à música, estou falando de Felicidade Urgente composta pelo Claudio Zoli (responsável por um dos maiores hits da década de oitenta que você certamente já cantou numa das estradas da vida): ♪ Na madrugada, vitrola rolando um blues, trocando de biquíni sem parar (sic). Se você ainda não sabe, a letra certa é: tocando B. B. King sem parar. :)

Felicidade Urgente é a segunda faixa do disco de mesmo nome e começa assim:

Nunca mais eu vou voltar/Essa estrada é meu destino/Vou seguir a minha vida/Vou achar o meu lugar

Elba canta esse anseio por uma liberdade, esse não-pertencimento a um lugar específico. A estrada é o seu destino. A vida já está acontecendo no percurso. Como boa leonina, assim como os arianos e principalmente os sagitarianos (outros signos de elemento fogo), ela sabe que o alvo não é lá muito importante. Joga sua flecha apenas para estabelecer a meta de avançar. Como bem cantou Paulinho Moska em A Seta e o Alvo: então me diz qual é a graça de já saber o fim da estrada quando se parte rumo ao nada?

Seguindo na canção, temos os versos:

‘Louco pra viver em paz/Eu procuro paraísos/Em lugares esquecidos/Em viagens ao luar/Eu vi a dor, sonhos/E sei de cor, o que é melhor pra mim’

Aqui, o autor da música parece querer nos levar prum lugar específico, que é o espaço do acolhimento, o lugar do bem-querer, onde de alguma maneira nos sentiremos protegidos, livres, serenos. Aquele lugar ideal onde todas as mazelas do mundo seriam deixadas para trás. Como cantou Elba numa canção de Gil: qualquer outro lugar ao sol, outro lugar ao sul, céu azul onde haja só seu corpo nu junto ao meu corpo nu. Ela que, numa outra canção de seu amigo Geraldo Azevedo, apenas apanhou à beira-mar um táxi pra estação lunar.

São nossos lugares de escapismo, que na vida dura e real, pode ser o silêncio do quarto ou o canto escuro da boate – fica a seu critério – e que na literatura foi tão bem retratado na Pasárgada de Manuel Bandeira: Vou-me embora pra Pasárgada/Lá sou amigo do rei/Lá tenho a mulher que eu quero/Na cama que escolherei/(...)/E quando eu estiver mais triste/Mas triste de não ter jeito/Quando de noite me der vontade de me matar/ (...)/ Vou me embora pra Pasárgada.

Voltando á música, logo em seguida vêm os versos:

A vida me fez desse jeito/O mundo é tão imperfeito/Pouca gente tem direito a ser feliz/O tempo passa de repente/Felicidade urgente para todos/Para todos nós

Logo depois de procurar paraísos em lugares esquecidos e viagens ao luar, o autor da canção constata que o mundo é tão imperfeito e que pouca gente tem direito a ser feliz. E numa atitude panfletária, reivindica felicidade urgente para todos, como se fosse impossível – e em tese é – ser plenamente feliz quando se sabe da existência da dor alheia, o que me fez lembrar uma crônica de Nelson Rodrigues n’A Vida como ela é em que ele diz o seguinte:

‘Uma pessoa que só tenha do mundo uma visão unilateral e rósea, e que ignore a face negra da vida, é uma pessoa mutilada. Por outro lado, nego a qualquer um o direito de virar as costas à dor alheia. Sei que nenhum de nós gosta de se aborrecer. Mais importante, porém, que o nosso frívolo conforto, que o nosso alvar egoísmo – é o dever de participar do sofrimento dos outros. Há uma leviandade atroz na alegria!’

E assim, irresponsável e quase leviano, Zoli conclui a canção:

Eu sempre quis muito mais/Mais do que era preciso/Quis milagres, absintos e delírios de prazer

Porque como já bem disse a sabedoria popular, o que a gente leva da vida é a vida que a gente leva. E viva você, trinta ou cem anos, quando olhar para trás você só vai ter a nítida sensação de ter aproveitado sua vida, se tiver se permitido os tais delírios de prazer. Filhos, casa própria, viagens, dinheiro, amores. Tudo isso só vale a pena, se nesse pacote estiver incluído o prazer. Que só é possível numa sucessão infindável de tentativas e erros. Sentindo a dor, vivendo os sonhos. E assim descobrindo o que te faz feliz. E se a felicidade não vier – pois há quem diga que todos os seres são infelizes, mas nem todos o sabem – tente ao menos ser alegre. Porque a alegria é incontestável. E depende muito da sua vontade e de uma virtude que só os realmente inteligentes têm: o humor. É ridículo levar-se a sério demais. Não ter humor é não ter lucidez, é não ter leveza. É ter certezas num caminho onde tudo é incerto. E eu que nada sei dessa vida, vou errando enquanto o tempo me deixar passar.


Ps.: Agora você também pode ler meus textos aqui.


Felicidade Urgente
Composição: Claudio Zoli/Roberto Lobato Santos

Nunca mais eu vou voltar
Essa estrada é meu destino
Vou seguir a minha vida
Vou achar o meu lugar
Louco pra viver em paz
Eu procuro paraísos
Em lugares esquecidos, em viagens ao luar
Eu vi a dor, sonhos
E sei de cor o que é
Melhor pra mim
A vida me fez desse jeito
O mundo que é tão imperfeito
Pouca gente tem direito a ser feliz
O tempo passa de repente
Felicidade urgente para todos
Para todos nós
Quero te fazer feliz
Quero ser feliz também
Com você tá tudo bem
Não vou mais olhar pra trás
No caminho do infinito
Encontrei minha razão
E me perdi no seu olhar
Eu sempre quis muito mais
Mais do que era preciso
Quis milagres absurdos
E delírios de prazer




segunda-feira, 4 de julho de 2011

Vai passar


‘A vida é um pêndulo que oscila entre o tédio e o sofrimento’

Talvez você ache a frase acima, do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, um tanto quanto pessimista. Não tiro sua razão. Acho que existe uma gama de sentimentos e emoções humanas bem mais amplas do que o tédio e o sofrimento para que o pêndulo da vida oscile apenas entre eles. O problema é que, quando passamos por sofrimentos terríveis (e inevitavelmente vamos passar por eles) não conseguimos enxergar uma solução, aquela bendita luz no fim do túnel. Talvez seja necessário. Talvez seja fundamental. Há até quem diga que um homem com uma dor é muito mais elegante.

Como Caio F. em Zero Grau de Libra, eu peço a Deus que derrame seu olho bom por todos aqueles que queriam ser outra coisa qualquer que não a que são, e viver outra vida que não a que vivem. E contrariando Schopenhauer eu diria que a vida não é esse pêndulo simplista. A vida estaria mais pruma montanha russa. Ou então uma estação de rádio dessas bem ecléticas que você nunca sabe qual é a próxima música que vai tocar. Mas a vida tem de tudo. Alegria, dor dilacerada da alma, dissabor, tristeza, desdém, otimismo irresponsável, êxtase, paixão, aventura, amor, solidão, desamparo. Quer entrar? Você está preparado? Então vai ali na barraquinha da coragem e compra um ticket. Porque é só isso que você precisa pra vir brincar aqui.

Sem coragem, você passa dias intermináveis somente existindo. Contando os minutos do tédio que é estar vivo. Mas, por vezes, parece que ela, a Dona Coragem, nos abandona. Inda mais nesses dias frios de julho em que não se tem vontade de levantar da cama. E não é preciso nem de remédios para dormir o dia inteiro. O desânimo já dá conta do recado.

E pensar que depois de julho vem agosto, esse mês considerado maldito pelo inconsciente popular tão bem retratado na crônica Sugestões para atravessar agosto do mesmo Caio F.:

‘Para atravessar agosto é preciso, antes de tudo, paciência e fé. Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro – e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco. ’

Mas eis que depois de agosto, vem setembro, que pra gente significa o início da primavera tão bem cantada por Beto Guedes em Sol de Primavera:

‘Quando entrar setembro e a boa nova andar nos campos/Quero ver brotar o perdão onde a gente plantou’

E isso me lembra algo que a Shakira disse no seu MTV Unplugged antes de começar a cantar a música :

Em todos os anos, há um momento em que a vida parece-nos mais fácil. E deixamos de consultar as linhas das mãos e começamos a reler os nossos poetas favoritos; por vezes, nos propomos a escrever alguns versos. E a boa notícia é que isso não acontece uma ou duas vezes, nos acontece muitas vezes.

E porque acredito nisso e porque seguir é o que marca o beat do meu coração, quero hoje postar uma música que fala justamente dessa perseverança. Composta pelo mesmo cara que disse ‘eu vejo a vida melhor no futuro, eu vejo isso por cima do muro de hipocrisia que insiste em nos rodear’, o Rei do Pop Brasileiro, já comentado antes nesse espaço, o senhor Luiz Maurício Pragana dos Santos, também conhecido como Lulu Santos.

A música de hoje é a oitava faixa do sexto álbum de Lulu – Toda Forma de Amor – e se chama A Cura. E começa assim:

‘Existirá/Em todo porto tremulará a velha bandeira da vida/Acenderá/Todo farol iluminará uma ponta de esperança’

O começo da música, para mim, é quase que como um mantra. Com duas frases iniciadas com verbos no futuro do presente, o que nos dá a certeza de que aquela ação realmente irá acontecer. A velha bandeira da vida que existirá em todo o porto e tremulará. É Lulu nos emanando boas vibrações. Gosto especialmente da composição do último verso em que o autor cria uma antítese interessante e sutil quando diz que TODO farol iluminará uma PONTA de esperança. Ou seja, mesmo que a esperança – essa, às vezes vã, ação da espera – seja pequena, só uma pontinha, uma hora ela será iluminada pelo farol, já que a missão deste será sempre a da orientação. E tudo o que a gente quer é orientação.

Seguindo na canção, temos os seguintes versos:

‘E se virá, será quando menos se esperar/Da onde ninguém imagina/Demolirá toda certeza vã/Não sobrará pedra sobre pedra’

Aqui Lulu fala de um tema que me é recorrente, o da distração. Você que me acompanha nesse espaço sabe que eu já tratei disso por aqui algumas vezes. Acredito no poder da distração em contraposição ao que os administradores e gestores do mundo corporativo chamam de foco. Falei sobre isso num post intitulado Enquanto Espero Acontecer :

‘Segundo o zen budismo, distração e conexão são ações similares como sugere essa frase da Monja Coen: ‘Ao tomar conhecimento da distração, mergulhei no presente’. Paradoxal? Acredito que não, se partirmos do princípio de que distração é o oposto de pré-ocupação. Uma pessoa distraída está mais aberta para vivenciar o agora simplesmente porque está relaxada. O que não quer dizer que não esteja consciente. Já uma pessoa pré-ocupada, e que alguns gostam de chamar de focados, focam tanto num mesmo ponto que acabam deixando despercebido tudo mais que está ao redor.’

É o que nos diz a canção: vem quando menos esperamos, da onde não imaginamos. Para em seguida demolir todas as nossas certezas. O que me parece muito sensato, já que a falta de certezas parece ser um privilégio da maturidade, como diria Renato Russo em Quase Sem Querer: não sou mais tão criança a ponto de saber tudo.

Continuando, os próximos versos nos dizem o seguinte:

‘Enquanto isso não nos custa insistir na questão do desejo/Não deixar se extinguir/Desafiando de vez a noção na qual se crê que o inferno é aqui’

Aqui, Lulu contraria Buda, já que este nos disse que todo sofrimento nasce do desejo. Que me desculpe o senhor Siddhartha Gautama, mas o que ele nos pediu é uma coisa quase impossível, isso se não for realmente impossível. Como não desejar num mundo tão cheio de possibilidade e vicissitudes? Desejar é estar vivo. O desejo é inerente à questão humana. Por ele, mais do que por qualquer outro sentimento, somos movidos. Insistir na questão do desejo, como diz a música, é essencial para fazer pulsar a vida. Mesmo que depois venham as frustrações, já que elas sempre virão. Mas esvaziar-se de desejos é envelhecer e como diria Rita Lee em Saúde: ‘Se por acaso morrer do coração, é sinal que amei demais. Mas enquanto estou viva, cheia de graça, talvez ainda faça um monte de gente feliz’. E assim vamos desafiando, de uma vez por todas, a noção na qual se crê que o inferno é aqui. Porque não, o mundo não é chato. Ele só é mal freqüentado. Mas se o sistema é mau, a minha turma é legal.

E por fim, somos brindados com os versos:

‘Existirá/E toda raça então experimentará/ Para todo mal, a cura’

Porque, acredite, vai passar. Tudo passa. E isso não é apenas uma frase clichê. Alguma dor sempre fica. E já que abri o texto com a frase de Schopenhauer, o encerro com outra de Nietzsche, também filósofo e seu conterrâneo: O que não me mata, me fortalece.

Ps.1: Dedico esse post à Anelise Csapo, a gata garota que prefere ser otimista e estar errada a ser pessimista e está certa.

Ps. 2: Agora você também pode ler meus textos aqui.


A Cura

Composição: Lulu Santos / Nelson Motta

Existirá
Em todo porto tremulará
A velha bandeira da vida
Acenderá
Todo farol iluminará
Uma ponta de esperança

E se virá
Será quando menos se esperar
Da onde ninguém imagina
Demolirá
Toda certeza vã
Não sobrará
Pedra sobre pedra

Enquanto isso
Não nos custa insistir
Na questão do desejo
Não deixar se extinguir
Desafiando de vez a noção
Na qual se crê
Que o inferno é aqui

Existirá
E toda raça então experimentará
Para todo mal
A cura




segunda-feira, 27 de junho de 2011

Foi um rio que passou em minha vida


Muito já foi dito nesse blog sobre os amores que deixaram marcas profundas, aquelas cicatrizes que não se esvaem nem com o tempo; sobre amores intensos que machucam a alma, aquele que tal qual Elis Regina canta em Atrás da Porta nos faz agarrar ‘nos teus cabelos, no teu peito, teu pijama, nos teus pés aos pés da cama, sem carinho e sem coberta’. Mas será mesmo que todo término de relação tem que ser assim, sempre uma tragédia, com um mar de lágrimas e, às vezes, até banhado em sangue? Eu, particularmente, acho que não. E outros compositores da nossa música também. Talvez o mestre da leveza (e que alguns chamariam de leviandade) quando o assunto é amor seja mesmo o Cazuza. Já que ele foi o cara que consagrou o exagero do amor inventado. E se inventamos podemos também desinventar, não é certo? Pois como disse Marina Lima em Virgem, se ‘as coisas não precisam de você, quem disse que eu tinha que precisar?’. E se inventamos tudo (há indícios de que até o amor materno é inventado), inventamos também a dor. A vida seria muito banal, se não déssemos a devida profundidade a cada situação. Mas que fique bem claro que em algumas situações (quiçá, na maioria delas) o seu amor é uma mentira que a minha vaidade quer e que se você sair de perto eu vou pensar em suicídio, mas no fundo eu nem ligo. Ou como cantou Maria Rita em Não Vale a Pena ‘é uma pena, mas você não vale a pena, não vale uma fisgada dessa dor, não cabe como rima de um poema de tão pequeno’.

E é sobre isso que a música de hoje fala, sobre um rio que passou em minha vida. Mas, por mais que a correnteza tenha sido arrebatadora, uma febre ou um fogo leve (deve ser da idade!), um rio é sempre um rio, sempre segue o seu fluxo no mesmo sentido. E alguns até secam; deixando apenas a lembrança da fertilidade do que foi um dia. Um rio nunca é um oceano. Uma enchente nunca terá a força de um tsunami. E quando sua água desemboca no mar, e perplexos ficamos com a infinitude das águas salgadas, um rio será só um rio, nada mais que isso.

Essa canção já foi gravada por Roupa Nova, Zizi Possi e mais recentemente pela banda de reggae candanga Maskavo. Foi composta em 1972 por uma dupla que fez história no rock nacional, mais precisamente no rock rural nacional. Como assim rock rural? Isso lá existe? Se você, assim como eu, é um apaixonado por música brasileira, já sabe que estou falando de dois caras que, junto com um terceiro, criou um estilo musical dos mais criativos já vistos nesse país. Criado na década de 70, o rock rural incorporou influências do folk e country anglo-saxônicos ao estilo da toada lusitana, com uma linguagem poética que se refere aos temas do campo, resultando numa musicalidade com ritmo de balada pop. E se você, assim como eu, já teve o seu momento BG (bicho grilo) de pisar os pés na terra, de tomar banho de cachoeira, de usar jeans rasgado, de acender uma fogueira e cantar desafinado numa roda de violão ‘Te amo, espanhola/Se for chorar, te amo’, ‘Pelas ruas onde andas, onde mandas todos nós, somos sempre mensageiros esperando a sua voz’, ‘Eu quero uma casa no campo, do tamanho ideal, pau-a-pique e sapê’, ‘Tudo que move é sagrado e remove das montanhas com todo cuidado, meu amor’, sabe que eu estou falando de Sá, Rodrix e Guarabyra, os três geniais criadores do rock rural que teve adeptos como Flávio Venturini e Beto Guedes. E a música de hoje é do disco Presente Passado Futuro de 1972, se chama Me faça um favor e começa da seguinte maneira:

‘Quero que você me faça um favor/Já que a gente não vai mais se encontrar/Cante uma canção que fale de amor/Que seja bem fácil de se guardar’

Os primeiro versos da canção já denotam o desapego e a leveza da letra. Seu autor constata de uma maneira simples e direta o fim de um vínculo: a gente não vai mais se encontrar. E pede para esse alguém que lhe cante uma canção que fale de amor, mas que seja bem fácil de se guardar. Porque assim é encarado esse término. Sem muitas neuras, mas também sem muito ardor. E por isso a letra fácil de se guardar. Nada a la Andrea Doria, música da Legião Urbana que discorre sobre o fim de um relacionamento cheia de metáforas inclusive no título da música (Andrea Doria é o nome de um navio que naufragou) e sim algo como ‘fácil, extremamente fácil, pra você e eu e todo mundo cantar junto’.

Logo em seguida, vem os versos:

‘Meu amor, o que eu sou, todo mundo vê/Me perdi, me esqueci/Dentro do seu mundo/Procurando a vida com você’

É a afirmação de uma autonomia e de uma individualidade que não existiam na vida a dois, já que depois de declarar que não vai mais encontrar a outra pessoa, o compositor diz ‘o que eu sou, todo mundo vê’. Diferente de quando ainda vivia aquela relação em que se perdeu e se esqueceu, pois estava dentro do mundo do outro – um mundo particular criado pela intimidade dos amantes – procurando a vida. Ou quem sabe procurando pela vida. Já que o simples fato de se procurar algo, deixa mais do que claro que você ainda não encontrou. E procurar a vida significa que você não percebe que ela já está acontecendo todos os dias e que, enquanto se procura por ela sem distração, ela passa todos os dias do seu lado, às vezes lhe sorrindo escancaradamente.

Continuando na canção:

‘Mesmo que as pessoas lembrem de nós/Mesmo que eu me lembre dessa canção/Não vai haver nada pra recordar/Nada que valeu, que houve de bom’

Aqui o autor da canção minimiza a importância da pessoa com quem viveu uma história. Pois, mesmo sendo uma pessoa que tenha feito parte da sua vida, já que dividiram momentos, pessoas, canções comuns, ele reduz a sua influência, negando-lhe o prestígio de ter tido algum poder sobre ele algum dia. O que, de fato, pode ser verdade, considerando que há controvérsias nos versos de Fernando Pessoa quando ele fala que ‘tudo vale a pena...’. Será mesmo? Se olharmos por aquele velho prisma de que aprendemos com o erro, talvez sim. Mas também só por isso. Já que existem pessoas que passam pela nossa vida e que não nos acrescentam nenhum sentimento benéfico como nos sábios versos de Itamar Assumpção cantados magnificamente por Zélia Duncan: ‘Vi, não vivi, não senti onda por ti, não senti nem o menor apetite, não senti o tremelique’.

E por fim, seguem os versos:

‘Meu jardim, seu quintal/Sempre a mesma flor/Hoje não, cada um dentro do seu mundo/Navegando contra a solidão’

É o autor da canção seguindo em frente, lamentando por ter cultivado margaridas no seu jardim só porque de lá também via a mesma flor sendo regada no quintal da outra pessoa. E quando bateu aquela vontade louca de arrancar as margaridas e cultivar rosas vermelhas, esse desejo foi sufocado por ser estranho demais. Mas hoje não! Hoje é cada um dentro do SEU mundo. Vasto, imenso, íntimo, particular mundo. Navegando contra a solidão. Em sua regravação dessa música, Zizi Possi, alterou o último verso para ‘carregando outra solidão’, que a meu ver, ficou mais honesto, já que acho que não devemos navegar contra a solidão. Eu sou/vou contra ao que é nitidamente ruim. E a solidão – quem pode evitar? – não é necessariamente ruim quando fazemos as pazes com ela. Por isso, achei genial a sacada de Zizi em dizer ‘carregando outra solidão’. Porque é só mais uma. Que pode ser diferente da última. Mas sempre será solidão. Que rima com desilusão. Que destoa de emoção. Que não combina com a paixão. Mas que vem acompanhada de conexão. Com você e com o mundo que passa a enxergar com o seu olhar. E não se iluda. Porque, por mais incomum que seja, esse substantivo também se diz no plural. Então até a próxima esquina. Se pelo caminho da direita ou da esquerda, isso eu não sei. Já que pelas ruas que andei, costumo sempre encontrá-las, as solidões.

Ps.: Agora você também pode ler meus textos aqui.


Me faça um favor

Composição: Sá e Guarabira

Quero que você me faça um favor
Já que a gente não vai mais se encontrar
Cante uma canção que fale de amor
Que seja bem fácil de se guardar

Meu amor, o que eu sou, todo mundo vê

Me perdi, me esqueci
Dentro do seu mundo
Procurando a vida com você

Mesmo que as pessoas lembrem de nós

Mesmo que eu me lembre dessa canção
Não vai haver nada pra recordar
Nada que valeu, que houve de bom

Meu jardim, seu quintal
Sempre a mesma flor
Hoje não, cada um dentro do seu mundo
Navegando contra a solidão


segunda-feira, 20 de junho de 2011

Em que altura?


Depois de cinco anos, ela está de volta. Deixou o balneário e veio para as duras poesias concretas das esquinas de São Paulo, cidade que segundo ela própria, faz o seu som vibrar e a faz ver o mar. Marina Lima como o Rio, cidade que deixou para trás (já que como ela mesma se define, é uma mulher de antenas e não de raízes) continua linda. Aos 55 anos está no auge de sua beleza física e de seu vigor artístico. E nada melhor que celebrar esse momento com um álbum intitulado Clímax.

Já disse aqui nesse espaço que Marina é uma das cantoras mais originais da nossa música. E volto a reafirmar isso sem a menor sombra de dúvidas. Uma cantora sui generis que não se compara com nenhuma outra da MPB. Tente buscar traços de outras cantoras em Marina Lima e você não encontrará porque Marina se criou em cima dela mesma, catando um pouquinho de cada influência aqui e acolá, fazendo uma música vira-lata. Entenda aqui vira-lata como um elogio, já que vira-lata é a mistura de várias raças. E assim é o som de Marina, moderno que bebe na fonte do tradicional, intimista que brinca com o popular, eletrônico que dança na malemolência do samba.

O álbum, de uma maneira geral, traz letras e sonoridades urbanas, urbanidade essa que sempre esteve presente nas letras de Marina que ao longo de sua carreira permeou seus discos com canções que nos falam das dores e das delícias dos moradores das grandes cidades em letras como Virgem (O Hotel Marina quando acende não é por nós dois nem lembra o nosso amor), Acontecimentos (Eu espero acontecimentos só que quando anoitece é festa no outro apartamento ... como pôde queimar nosso filme?) e Pierrot do Brasil (Aqui cada cidade é uma ilha, sem laços, traços, sem trilha e o medo a nos rodear).

Clímax abre com Não me venha mais com o amor, parceria de Marina com Adriana Calcanhoto, que como o próprio nome sugere, é uma canção de desencanto e, a meu ver, também de libertação, já que sua autora propõe uma relação baseada fortemente no sexo em detrimento do amor:

‘Só eu sei lhe dar o melhor/ Noites de subir pelas paredes altas/Noites de incendiar o lençol/Noites de ver estrelas sob o teto do quarto/Noites de apurar o sabor/Noites inteiras com manobras de risco no ato/Só não me venha mais com o amor’

Não me venha mais com o amor e Keep Walkin talvez sejam as duas músicas do CD que tenham uma batida mais sexual. Confesso que a sonoridade da segunda me lembrou muito a versão que Marina gravou de Difícil, uma canção do álbum Todas de 1985, pro álbum Lá nos Primórdios de 2006.

A segunda faixa de Clímax, #SP Feelings é uma homenagem à cidade de São Paulo e às pessoas que por aqui habitam e também uma reflexão de Marina sobre essa nova fase de sua carreira e de sua vida:

Essa cidade faz meu som vibrar/E querer viver pra concluir/Tanta perspectiva nova, ímpar/Que só cidades grandes sabem produzir/ ... / Japas, carros, beijos, bienais/Que ainda guardam muito do meu cais

Apesar de ser um álbum muitíssimo autoral (Das onze músicas, dez são compostas por Marina. A única exceção é uma versão do clássico sessentista romântico Call me de Tony Heatch), Marina expande seus horizontes ao fazer parcerias com artistas interessantes como alguns nomes da hora como Karina Buhr em Desencantados, canção que também tem a presença ilustre de Edgar Scandurra no violão, na guitarra e nos vocais.

Em Pra Sempre, Marina divide os vocais com Samuel Rosa numa balada romântica e talvez a mais comercial do álbum, com potencial para virar hit.

Mas de todas as canções, a que mais gostei é a faixa número cinco do álbum em que Marina divide os vocais com Vanessa da Mata, numa música lindíssima chamada A Parte Que Me Cabe e é sobre essa música especificamente que me deterei a falar daqui em diante.

A música começa com uma brincadeira de Marina, em que escutamos sua voz de fundo gritando ‘Vanessa, cê tá no meu disco!’, um reconhecimento de Marina à Vanessa da Mata, reconhecimento esse de uma artista que, como já foi dito acima, está sempre antenada nas gerações de músicos que estão começando e que trazem alguma novidade para o cenário musical. No DVD Acústico MTV, Marina dá um depoimento falando sobre a importância de Daniela Mercury e Carlinhos Brown na sua carreira, de como a música dos dois mexeu com seu modo de fazer música. Enfim, uma bonita homenagem de uma artista já consagrada, que abre alas pros músicos da nova geração entrarem e seguirem com suas variedades de ritmos e sons.

A Parte que me cabe começa com uma programação de bateria potente de Edu Martins para, logo em seguida, entrar num samba que como a própria Marina diz é ‘um samba do meu jeito’. Um samba que não tem as explosões de bateria de uma escola, mas sim algo mais cadenciado ao estilo de Samba da Bênção de Vinícius de Moraes ou Desde que o samba é samba do Caetano.

Então Marina nos pergunta:

‘Em que altura deve se abrir mão das aventuras, dos riscos e da paixão?’

Pergunta que eu refaço a vocês. Existe uma altura da vida que a gente deve abrir mão de sentimentos tão viscerais, de sensações que nos trazem esse frescor, que nos fazem sentir vivos? E no que seria pautado esse toque de recolher? Na idade? Na condição civil? Nas responsabilidades acumuladas pelo correr dos anos? Na falta de brilho dos olhos causada justamente pelo severo olhar do outro que julga e que pune?

A própria Marina responde essa pergunta:

‘Se estamos vivos, temos o direito de sentir.’

E do alto de sua maturidade ironiza os incautos do coração, aqueles que começam a trilhar os caminhos tão incertos do amor:

‘Será bonito ficar de longe e denegrir a juventude e os com fogo no coração’.

Frase que só alguém que amou demais pode proferir, alguém que já teve febre e sabe que a temperatura a qualquer momento abaixa. Que os cortes, por mais profundos que sejam, um dia viram cicatrizes. Que nos acompanham pela vida afora, é certo. Mas que, em dado momento, será esquecido porque o farol da ilha irá girar de novo por outros olhos e armadilhas e nós iremos nos jogar onde já caímos. Mais uma vez e outra e outra e outra. Por isso, envelheceremos bem, olhando os outros sem doçura e com desdém. Daremos risada daquele adolescente que passa o dia inteiro sem comer porque acha que o seu sofrimento é uma ferida onde o sangue não estanca, porque acha que ele é o rapaz mais triste do mundo. Os escolados em matéria de amor sabem que isso é só mais um capítulo numa vida tão afeita aos dias iguais. É a invenção da nossa humanidade, aquilo que criamos para dar mais sabor à nossa (in)existência. Como na canção:

‘Cada um é único no mundo e nisso todo mundo é igual. Uns resolvem tudo num mergulho, outros seguem em busca de um ideal.’

Mas independente da escolha de cada um, se o escuro do quarto ou o neon da pista de dança, uma coisa é sempre certa, a solidão. Que pode ser de uma quietude pacífica ou medonha. E isso só depende do caminho que você vai trilhar. Mas quando enfim, você encontrar a inevitável Solidão que tenha o direito à sua individualidade assegurado como nos versos finais d’A parte que me cabe:

Me deixa quieta com minha solidão. A vida é minha e também meu coração. E se você já encontrou a sua parte, me deixa em paz atrás da parte que me cabe.’

Ps.: Agora você também pode ler meus textos aqui.


A Parte Que Me Cabe

Composição: Marina Lima

Em que altura deve se abrir mão das aventuras, dos riscos e da paixão?

Se estamos vivos, temos o direito de sentir

Será bonito ficar de longe e denegrir a juventude e os com fogo no coração

Quando as doenças e os medos são em vão

Em que medida envelheceremos bem, olhando os outros sem doçura e com desdém?

Cada um é único no mundo

E nisso todo mundo é igual

Uns resolvem tudo num mergulho

Outros seguem em busca de um ideal

Me deixe quieta com a minha solidão

A vida é minha e também meu coração

E se você já encontrou a sua parte

Me deixe em paz atrás da parte que me cabe



segunda-feira, 13 de junho de 2011

Por outros olhos e armadilhas








“Ninguém se separa, Rímini. As pessoas se abandonam. Essa é a verdade, a verdade verdadeira. O AMOR PODE ATÉ SER RECÍPROCO, MAS O FIM DO AMOR, NÃO, NUNCA. Os siameses se separam. Mas não se separam, tampouco: porque sozinhos não conseguem. Um terceiro precisa separá-los: um cirurgião, que corta pelo meio o órgão ou a membrana que os une com um bisturi e derrama sangue e na maioria das vezes, diga-se de passagem, mata, mata um deles, pelo menos, e condena o outro, o sobrevivente, a uma espécie de luto eterno, porque a parte do corpo pela qual estava unido ao outro fica sensibilizada e dói, dói sempre, e se encarrega de lembrá-lo, sempre, de que não está nem nunca vai estar completo, que isso que lhe tiraram nunca mais poderá ter de novo.”

Gosto especialmente desse trecho do livro O Passado do Alan Pauls porque ele consegue traduzir brilhantemente esse sentimento de não-aceitação do término de uma relação. Quando duas pessoas até então cúmplices em seus planos de vida, testemunhas solitárias de seus devaneios românticos, necessitadas da presença do outro para se fazerem válidas, começam a se perderem quando olham para as infinitas possibilidades da estrada. E existe um momento em que o motorista pisa no freio porque acabou de ler a placa ‘Cuidado, pista sinuosa a 50 metros’ e o carona está tão relaxado com os pés no porta-luvas cantando ‘Loving you is easy 'cause you're beautiful’ que nem percebe que o outro tirou o pé do acelerador. E nem percebe que agora o motorista está deslocado. Não sabe se vai para a direita ou para a esquerda. Até que ele pára o carro e abre o mapa no seu colo porque está literalmente perdido. Daí o carona pergunta: ‘Por que mapas? Qual a graça de já saber o fim da estrada quando se parte rumo ao nada? A gente tinha tanta certeza de tudo. Era só eu e você. A gente se bastava. O meu mundo girava em torno de você.’ Mas o fim do amor, como foi bem dito por Alan Pauls, nunca é recíproco.



A afinidade do início, a trilha sonora romântica que diz ‘E no meio de tanta gente eu encontrei você, entre tanta gente chata, sem nenhuma graça, você veio. E eu que pensava que não ia me apaixonar nunca mais na vida’ se transforma num lamento que diz ‘Você diz que tudo terminou, você não quer mais o meu querer. Estamos medindo forças desiguais. Qualquer um pode ver que só terminou pra você’.



- E os planos? Onde é que eles ficam? Você disse que queria morar comigo! Combinamos viajar no próximo feriado, lembra? E a decoração do apartamento? Já tínhamos até decidido a cor do sofá!



- Eu disse pra você ir com calma.



Nessa hora tem sempre alguém que pediu pra você ir com calma, pra não fazer tantos planos. Mas como na música Meu Plano da Daniela Mercury, a resposta pode ser: ‘Engano seu achar que fosse brincadeira. Engano seu. Aconteceu de ser assim dessa maneira e o plano é meu. Mesmo sem motivo, sem sentido, sem saber, andei fazendo planos pra você.’



É dessa falta de sintonia que a música de hoje fala. Enquanto um dança valsa. O outro dança bolero.



Gravada pela primeira vez em 1969 no disco Ben Tocado por um dos cantores mais criativos da nossa música, um cara inovador, um dos inventores do samba-rock, mas que também inclui em sua música elementos da bossa nova, do jazz, do maracatu, do funk e do ska. Um artista genuíno, referência musical no Brasil e no mundo, um ariano de talento incontestável (só para constar, tenho muito orgulho de fazer aniversário no mesmo dia que ele), um artista cheio de swing, um compositor versátil capaz de nos levar às lágrimas em algumas canções e ao alegre êxtase da malemolência em outras. Estou falando de Jorge Duílio Lima Meneses. Um cara nascido lá em Madureira e mais conhecido como Jorge Ben Jor. E a música de hoje já é um clássico da MPB, gravada por Daniela Mercury, Fernanda Abreu, Caetano Veloso, Gal Costa, Paulo Ricardo dentre outros. E começa assim:



‘Ela já não gosta mais de mim/Mas eu gosto dela mesmo assim/Que pena, que pena/Ela já não é mais a minha pequena/Que pena, que pena...’



O começo da música fala justamente do que foi dito no início do post, sobre essa não reciprocidade de sentimentos: ‘ela não gosta mais de mim, mas eu gosto dela mesmo assim’. É aquele momento em que você tem que se acostumar com a vida sem aquela outra pessoa que era parte intensa de sua rotina. E o tédio dos dias vindos depois desse término recente é gritante justamente porque ela estava presente de uma maneira até cronológica. Você sabia que ia chegar em casa à noite e receber aquela ligação. Ou então sente essa ausência fisicamente, quando você acende a luz do quarto e está lá aquela cama insuportavelmente bem arrumada com todos os travesseiros no lugar e você procura por aquele cheiro que ainda deve estar em algum lugar. E você que até então era a pessoa mais importante do mundo para esse outro alguém começa a receber pequenos baques cotidianos, quando ele te chama, pela primeira vez, depois de séculos, pelo seu nome. Nada mais normal do que te chamar pelo seu verdadeiro nome, não é? Seria normal, se você já não estivesse acostumada com aquele apelido carinhoso que só você e ele conheciam. E de repente toca aquela música que você costumava aumentar o volume e cantar em alto e bom som. E você pula logo essa faixa porque o que costumava ser bom agora é só um vazio sem esperança.



‘Pois não é fácil recuperar um grande amor perdido/Ela era uma rosa/As outras eram manjericão/Ela era uma rosa que mandava no meu coração.’



E você jura que nunca mais vai se apaixonar de novo. ‘Como é que eu vou encontrar um cara tão legal de novo? Como é que eu vou achar alguém com quem eu tenha tanta afinidade novamente?’ Esse grande amor perdido que a música fala. E grandes amores não se encontram em cada esquina. Acho mesmo que quem já viveu um grande amor tirou a sorte grande. Quem encontrou seu pavão no meio de tantos urubus, fica mais resistente à novas investidas. É normal ficar um pouco descrente quando se perde alguém que valeu a pena. Mas há que ter uma sabedoria na separação, como numa música que escutei outro dia da Julieta Venegas que diz assim:



'Vamos brindar essa despedida com a certeza de ter vivido algo que nos mudou.'


E é exatamente isso que Jorge Ben parece nos dizer na reta final de sua canção:


‘Mas eu não vou chorar/Eu vou é cantar/Pois a vida continua/E eu não quero ficar sozinho no meio da rua/Esperando que alguém me dê a mão.’



Acho fundamental ter essa sabedoria de agir nesses momentos. Porque isso é um fato, a vida continua mesmo. E o mundo não vai parar porque você sofreu uma desilusão amorosa. Quem dera, o mundo fosse tão romântico a ponto de você virar para o seu chefe e dizer: ‘Não posso trabalhar hoje, estou sofrendo por amor’ ou então ‘Não vou trabalhar hoje. Motivo: estou amando e sendo correspondida. Não quero me aborrecer com detalhes mesquinhos do meu cotidiano’. Nessas horas é melhor pensar como Marina em Virgem: Se as coisas não precisam de você, quem disse que eu tinha que precisar? E não, meu bem, o Hotel Marina quando acende não é por nós dois e nem lembra o nosso amor. Então é melhor fazer a roda da vida rodar mais uma vez e o farol da ilha girar de novo e de novo e de novo por outros olhos e armadilhas. Esse sofrimento todo pode ser muito bonito no cinema ou numa tragédia clássica de Tenessee Williams como na cena final e antológica de Um Bonde Chamado Desejo, em que Blanche é amarrada numa camisa de força e levada pelos enfermeiros e, num lampejo de lucidez, solta: ‘Sempre dependi da bondade de estranhos.’ Mas mesmo dependendo da bondade de estranhos, prefiro manter minha dignidade e tal qual Jorge, eu não vou chorar, eu vou é cantar. E não. Não vou ficar sozinho no meio da rua esperando que alguém me dê a mão.



Que pena



Jorge Ben Jor




Ela já não gosta mais de mim

Mas eu gosto
dela mesmo assim
Que pena, que pena

Ela já não é mais a minha pequena

Que pena, que pena

Pois não é fácil recuperar

Um grande amor perdido

Ela era uma rosa

As outras eram manjericão

Ela era uma rosa

Que mandava no meu coração

Ela já não gosta mais de mim

Mas eu gosto
dela mesmo assim
Que pena, que pena

Ela já não é mais a minha pequena

Que pena, que pena

Mas eu não vou chorar

Eu vou é cantar

Pois a vida continua

E eu não ficar sozinho

No meio da rua, esperando que alguém me dê a mão







terça-feira, 31 de maio de 2011

Valeu a pena


Foi no dia 8 de maio. Era o final de uma tarde melancólica de domingo. Tinha passado o dia na cama, naquela preguiça gostosa de nenhuma obrigação para fazer. Tinha acabado de ler um quadrinho que havia começado naquele mesmo dia, mais uma dessas histórias claustrofóbicas de uma família comum norte-americana com o sugestivo título de Cicatrizes. O livro, na verdade, é a autobiografia de David Small, um gênio que com seu traço singular realmente faz valer aquela velha frase clichê ‘mais vale uma imagem do que mil palavras’. E no caso de David, que imagens! O livro é todo em preto e branco e, apesar de não ser um expert em ilustração, ou justamente por isso, posso dizer que seu desenho me causou algumas das sensações mais variadas como compaixão por David quando criança, estranhamento em outra parte em que um coelho faz as vezes de um psiquiatra e indignação pela forma como a saúde física do protagonista vai sendo conduzida de maneira tão irresponsável por seus pais. Terminei de ler Cicatrizes e fechei o livro com aquela frase de Caetano na cabeça, aquela mesma que diz que de perto ninguém é normal. Continuando na minha missão inabalável de aproveitar ao máximo minha preguiça de domingo, já estava decidido a engatar na leitura de um outro livro, dessa vez algo menos pesado, um romance infanto-juvenil cujo o subtítulo é ‘Porque ninguém precisa de namorado para ser feliz’. O título do livro é The Lonely Hearts Club e conta a história de uma garota que cansada de se desiludir com os garotos, resolve fundar um clube em homenagem aos quatro caras que nunca a decepcionaram na vida: John, Paul, George e Ringo. Achei o mote e a capa do livro – quatro amigas atravessando a famosa faixa de pedestre em frente o estúdio dos Beatles na Abbey Road – criativos e bem humorados e por isso resolvi lê-lo. Por isso e porque também estava numa fase de contestar as paixões avassaladoras, aquelas que passam como um furacão e nos tiram o equilíbrio. Sentia vontade de militar por alguma coisa. Não fui pro churrasco da gente diferenciada de Higienópolis. Não sou lactante e por isso não pude participar do mamaço no Itaú Cultural. Mas estava realmente interessado em criar um movimento político e me identifiquei com o The Lonely Hearts Club. Todas as frases que publicava no meu status do Facebook tinham um cunho político a favor da Solidão Bem Resolvida, caso dessa última, trecho da canção Hoje eu tô sozinha da Ana Carolina: ‘Logo agora que eu parei/Parei de te esperar/De enfeitar nosso barraco/De pendurar meus enfeites/Te fazer o café fraco/Parei de pegar o carro correndo/De ligar só pra você/De entender sua família/E te compreender.’

Pois bem, como vocês leram, essa foi a última frase que postei nessa linha ‘auto-suficiente’ porque nesse mesmo domingo, o amor meu apareceu da forma mais inesperada e como militante de meia tigela que sou, mudei o discurso mais que depressa e com convicção bradava que, no fim das contas, quem tá certo é o Tom Jobim que diz que é impossível ser feliz sozinho. E por isso amei com fé. E por isso morri de amor pra não me arrepender depois que o tempo tivesse passado. Mas de novo a solidão veio. E o amor não venceu o tédio.

Mas parecia tão óbvio que iria terminar assim, me disse uma amiga. Para logo em seguida, me perguntar: ‘Por quê? Por quê tudo de novo? Que fé nas relações inabalável é essa que você tem?’ Não sei de onde vem essa vontade de acreditar. Talvez essa vontade de acreditar no amor seja uma maneira de não encarar outros desejos que, por hora, seriam mais primordiais, como bem descreve Contardo Calligaris em sua crônica Considerações sobre novos desejos:

'Imaginemos alguém que esteja no meio de sua vida profissional e num bom momento de sua vida amorosa. Nesse caso, provavelmente, o novo desejo será silenciado, reprimido, menosprezado ("deixe para lá, é besteira"). Resultado: o indivíduo continuará declarando que está vivendo a vida que ele queria (e, em parte, será verdade); só que, de repente, sem entender por quê, ele perderá sua alegria. Por que razão nosso indivíduo negligenciaria seus novos desejos? Simples: por serem novos, eles acarretam a ameaça de uma ruptura no presente, afetos e laços que poderiam ser perdidos, medo da solidão e preguiça dos esforços necessários para reinventar a vida.'

Pensando em tudo isso, me veio à mente a música de hoje que, acredito, todos vocês já devem ter cantarolado em dado momento e foi justamente por estar com os joelhos doendo é que cantei:

‘Se meus joelhos não doessem mais diante de um bom motivo que me traga fé’

Estou falando de Pescador de Ilusões que, na minha opinião, é a música mais bonita do Rappa Mundi, o disco de estréia d’O Rappa. Quiçá, a música mais bonita da banda.

A música começa com a frase que destaquei acima, demonstrando uma falta de vocação para a devoção. Mesmo que por um bom motivo, seu autor parece pensar duas vezes perante o ato de se ajoelhar por algo. Considerando que ajoelhar-se é um ato de reverência, adoração, submissão e até mesmo humilhação, não há bom motivo que justifique tanto sacrifício.

Na seqüência, vem o trecho:

Se por alguns segundos eu observar – e só observar – a isca e o anzol/Ainda assim estarei pronto para comemorar/Se eu me tornar menos faminto que curioso/ O mar escuro trará o medo lado a lado com os corais mais coloridos

Acho geniais esses versos que me remetem àquela velha parábola zen budista em que o Mestre Arqueiro diz ao seu discípulo para não mirar o alvo. É como se ele dissesse que existem várias outras coisas no percurso da flecha até o seu alvo. Coisas tão díspares e ao mesmo tempo tão complementares como distração e concentração. Paciência para observar e consciência para poder ser pleno no momento em que o alvo finalmente for acertado. Ser menos faminto e mais curioso. Menos pressa. Mais tato. Menos impulsividade. Mais sensibilidade. Menos intensidade. Mais continuidade. Como no ensinamento de Seymor, personagem-fetiche de J. D. Salinger, ao seu irmão mais novo enquanto ele estava jogando bola de gude num fim de tarde de 1927 em Nova York, que transcrevo aqui:

'Com as luzes do toldo às costas, o rosto de Seymor estava na penumbra, pouco nítido. Ele tinha dez anos. Pelo jeito que se equilibrava no meio-fio, pela posição de suas mãos, pela... pela incógnita x, eu sabia tão bem quanto agora que ele estava cônscio da magia da hora. “Por que você não tenta mirar menos?”, perguntou-me sem se mover do lugar. “Se você acertar quando mirar, vai ser por pura sorte”, continuou falando, comunicando, sem por isso quebrar o encanto. Então EU tratei de quebrar o encanto. De propósito. “Como é que vai ser SORTE, se eu MIREI?”, respondi não muito alto (apesar da ênfase gráfica) porém com mais irritação na voz do que estava de fato sentindo. Ele não disse nada por alguns instantes, apenas se deixou ficar equilibrado no meio-fio, olhando-me, eu sabia imperfeitamente, com amor. “Porque vai ser”, acabou dizendo. “Você vai ficar SATISFEITO de acertar a bola dele, não vai? Não vai ficar SATISFEITO? E, se você fica SATISFEITO quando acerta a bola de alguém, então secretamente, é porque não esperava muito acertar. E é por isso que tem de haver uma dose de sorte, tem de ser meio sem querer”.

E meio sem querer, Salinger, continuo seguindo. Distraído, impaciente e indeciso. Ousando catar na superfície de qualquer manhã as palavras de um livro sem final. Se valeu a pena? Tudo vale a pena quando a alma não é pequena, já dizia o brado lusitano. E eu digo que sim. Valeu a pena. Sou Pescador de Ilusões.


Pescador de Ilusões


Se meus joelhos não doessem mais
Diante de um bom motivo
Que me traga fé

Se por alguns segundos eu observar
E só observar
A isca e o anzol
Ainda assim estarei pronto pra comemorar
Se eu me tornar menos faminto que curioso
O mar escuro trará o medo lado a lado
Com os corais mais coloridos

Valeu a pena
Sou pescador de ilusões

Se eu ousar catar
Na superfície de qualquer manhã
As palavras de um livro sem final

Valeu a pena
Sou pescador de ilusões


segunda-feira, 16 de maio de 2011

O que era doce virou sal


‘Amar é um ato de fé e quem tiver pouca fé, também terá pouco amor.’

Concordo em gênero, número e grau com a frase do psicanalista e filósofo alemão Erich Fromm. Acho que todo amor é uma forma de entrega e, como tal, uma pequena revolução pessoal no nosso modo de ver as coisas do mundo. Quando se ama alguém e, de alguma maneira, se passa a dividir o seu tempo (que talvez seja aquilo que você tenha de mais precioso) com esse alguém, é preciso se deixar levar, acreditar que a vida é bela e o sol, uma estrada amarela como na canção do Chico. Não há espaço para titubeações se a pessoa que você enxerga ao seu lado é digna da sua admiração. Então, o que você está esperando para se jogar de ponta cabeça, de olhos fechados? Confiança, você pode me responder. Mas isso se conquista com o tempo, lhe direi. Então não há mesmo outra opção senão acreditar. Acreditar que tudo vai dar certo. Porque como diria Alexandre, o Grande: ‘A sorte favorece os audaciosos’.

E não é sempre que teremos esse fulgor, essa vontade de lançar os dados, de arriscar, de jogar tudo pro alto, de recomeçar. Vivo batendo na tecla de que a maturidade é o oposto da espontaneidade. E é muito difícil encontrar numa relação duas pessoas que estejam em pé de igualdade nesses dois quesitos. Sempre vai ter um que pisa no freio enquanto o outro quer acelerar. E nessa disputa entre razão e emoção existem duas opções plausíveis. Ou você puxa o freio de mão no momento em que o outro está a 180 por hora fazendo com que o carro dê um cavalo de pau e pare no meio da pista sendo massacrado por um caminhão; ou você pisa mais forte no acelerador e pára à beira do abismo, naquele lugar onde, queira ou não queira estamos prestes a voar.

Então, você já sabe de que lado está? É cara ou coroa? Comedimento ou paixão? Febre ou hipotermia? A sorte de um amor tranqüilo com sabor de fruta mordida ou você precisa de alguém sem o qual você passe mal, sem o qual você não seja ninguém? Mas não existe um meio termo?, você deve estar se perguntando. Pelo menos hoje não. Porque hoje eu quero decifrar uma letra que é 8 ou 80 interpretada por uma cantora da novíssima geração da MPB.

Escutei essa música pela primeira vez saindo de uma balada. Todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite e comigo não foi diferente. Lá estava eu, mais uma vez, numa pista de dança, entre fumaças e neons, todo torpor, esperando acontecimentos. E eles vieram. Conheci um menino bonito, mas que como na música de Rita Lee, também não dizia mais nada. Mas naquele momento eu não sabia disso. E nem queria saber. Queria acreditar. Saímos dali à luz do dia. E aquela noite de sábado luminosa e radiante havia se transformado numa manhã de domingo melancólica com a garoa paulistana dando o ar de sua graça. Seria aquilo um sinal de mau agouro? Poderia até ser, mas naquele momento não quis, não podia, não queria captar nada. Queria viver. Pegamos um táxi. Quando entramos no carro, escuto os primeiros versos dessa canção no rádio:

Tem que amar com fé/Tem que morrer de amor/Pra não ser arrepender depois que o tempo passou

Adorei a melodia, a voz daquela cantora que ainda não sabia quem era. Mas quando cheguei em casa e joguei a letra no Google, descobri que era uma velha conhecida, uma pessoa, aliás, muito representativa da época em que vivemos já que havia participado de um reality show em que podia ser observada vinte e quatro horas por dia enquanto estava lá. Estou falando de Danni Carlos, que ficou em segundo lugar na primeira edição d’A Fazenda, programa exibido na Record. Se você é daquelas pessoas que acham que só porque uma pessoa participou de um programa tão voyeurístico, ela não pode te oferecer nada de bom, sugiro que encerre sua leitura por aqui. Ou melhor, sugiro que você veja o que o deputado federal do PSOL Jean Wyllys, vencedor da quinta edição do BBB tem feito no Congresso Nacional.

Voltando à Danni Carlos, depois de ter gravado alguns discos de covers de rocks e baladas internacionais, ela aparece com um disco de músicas inéditas com o sugestivo nome de Música Nova em que nos apresenta algumas boas canções, como Doce Sal, que hoje tento decifrar. Curioso notar que, no caso de Danni, sua participação no programa da Record foi bastante positiva, já que esse disco foi gravado em 2007, mas algumas músicas só foram tocar nas rádios em 2009, época em que o programa estava no ar.

Voltando à letra, já citei aqui os seus primeiros versos que são: ‘Tem que amar com fé/Tem que morrer de amor/Pra não se arrepender depois que o tempo passou’. Logo em seguida, na maior naturalidade, sem nenhuma pausa dramática, Danni emenda os seguintes versos que são diametralmente opostos aos anteriores:

‘Tem que dizer adeus pra não acomodar/Mentira por mentira eu prefiro ficar só/Sem você/Sem ouvir, nem dizer’

Quando disse lá em cima que a letra dessa canção era 8 ou 80 não estava brincando. E acho que isso fica bem claro no paradoxismo desses primeiros versos, que por mais contraditórios que possam parecer, conservam uma coisa em comum que é a intensidade de seu interlocutor que, ao mesmo tempo em que ama com fé e morre de amor pra não se arrepender depois que o tempo passou, diz adeus pra não se acomodar. Radical? Talvez. Mas também muito honesto. Versos ditos por uma pessoa que se conhece muito bem e que sabe o que pode lhe fazer feliz. Que não se contenta com migalhas. Que não suporta a rotina. Que talvez viva um tipo de amor que não pode dar certo sob à luz da manhã, como aquele cantado por Caetano em Eclipse Oculto. Mas que pede em troca aquilo que ela dá: a entrega. Sem simulações de desejo. Porque foi amada demais pra aceitar tão pouco. E por isso, prefere a solidão, o silêncio.

Continuando na canção, seguem os próximos versos:

‘Porque acabou-se/O que era doce virou sal/E o mundo continua indo e vindo/É natural/Noites tão modernas/Chances infinitas de encontrar alguém que faça minha cabeça sem precisar pensar.’

Estilisticamente, acho genial a construção dos dois primeiros versos. A melodia da canção o encerra numa primeira frase curta (Porque acabou-se) e abre a segunda frase (O que era doce virou sal) e brinca com um dito popular: Porque {ACABOU-SE O QUE ERA DOCE} virou sal. E dessa maneira, a letra nos passa uma noção de naturalidade desses acontecimentos que poderiam ser tão trágicos, mas que, aos olhos do narrador não passa de desdobramentos naturais dos ciclos da vida. Sem dramas. Afinal de contas, o mundo continua indo e vindo. E como na música Virgem da Marina Lima, ele parece dizer: ‘As coisas não precisam de você/Quem disse que eu tinha que precisar?’ E que venham novas histórias vividas em noites modernas como naquele sábado luminoso que virou um domingo nublado em que peguei um táxi querendo viver mais uma história de amor que não passou de dois ou três encontros. E que foram experimentados de uma maneira única para que eu pudesse viver os próximos encontros que estavam por vir. Coisas que uma cidade como São Paulo me propicia. Como também propicia esses desencontros mais do que comuns. São as sortes e os revezes de um apostador de alto risco, disposto a jogar até a última ficha já que as chances são infinitas. E as opções bem distintas. Um dia da caça. Outro do caçador. Um dia alguém que faça a minha cabeça. Noutro alguém que deseje o meu corpo.

Como nos versos da canção, eu sugiro:

Se a solidão vier, tenta se apaixonar, vivendo o dia-a-dia, deixando rolar. Mas tem que ser alguém que valha a pena amar.

Mesmo que seja aquele grande amor cantando por Ângela Rô Rô:

Amor, meu grande amor

Só dure o tempo que mereça

E quando me quiser

Que seja de qualquer maneira

...

E quando me encontrar

Meu grande amor, por favor

Me reconheça.


Doce Sal

Composição: Danni Carlos

Tem que amar com fé
Tem que morrer de amor pra não se arrepender depois que o tempo passou
Tem que dizer adeus pra não acomodar
Mentira por mentira eu prefiro ficar só

Sem você

Sem ouvir, nem dizer
Porque acabou-se

O que era doce virou sal
O mundo continua indo e vindo, é natural
Noites tão modernas, chances infinitas de encontrar alguém que faça minha cabeça sem precisar pensar

Se a solidão vier, tenta se apaixonar

Vivendo dia e dia, deixando rolar
Mas tem que ser alguém que valha a pena amar
Mentira por mentira eu prefiro ficar só

Sem você, sem ouvir, nem dizer
Porque acabou-se

O que era doce virou sal
O mundo continua indo e vindo, é natural
Noites tão modernas, chances infinitas de encontrar alguém que faça minha cabeça sem precisar pensar