segunda-feira, 13 de junho de 2011

Por outros olhos e armadilhas








“Ninguém se separa, Rímini. As pessoas se abandonam. Essa é a verdade, a verdade verdadeira. O AMOR PODE ATÉ SER RECÍPROCO, MAS O FIM DO AMOR, NÃO, NUNCA. Os siameses se separam. Mas não se separam, tampouco: porque sozinhos não conseguem. Um terceiro precisa separá-los: um cirurgião, que corta pelo meio o órgão ou a membrana que os une com um bisturi e derrama sangue e na maioria das vezes, diga-se de passagem, mata, mata um deles, pelo menos, e condena o outro, o sobrevivente, a uma espécie de luto eterno, porque a parte do corpo pela qual estava unido ao outro fica sensibilizada e dói, dói sempre, e se encarrega de lembrá-lo, sempre, de que não está nem nunca vai estar completo, que isso que lhe tiraram nunca mais poderá ter de novo.”

Gosto especialmente desse trecho do livro O Passado do Alan Pauls porque ele consegue traduzir brilhantemente esse sentimento de não-aceitação do término de uma relação. Quando duas pessoas até então cúmplices em seus planos de vida, testemunhas solitárias de seus devaneios românticos, necessitadas da presença do outro para se fazerem válidas, começam a se perderem quando olham para as infinitas possibilidades da estrada. E existe um momento em que o motorista pisa no freio porque acabou de ler a placa ‘Cuidado, pista sinuosa a 50 metros’ e o carona está tão relaxado com os pés no porta-luvas cantando ‘Loving you is easy 'cause you're beautiful’ que nem percebe que o outro tirou o pé do acelerador. E nem percebe que agora o motorista está deslocado. Não sabe se vai para a direita ou para a esquerda. Até que ele pára o carro e abre o mapa no seu colo porque está literalmente perdido. Daí o carona pergunta: ‘Por que mapas? Qual a graça de já saber o fim da estrada quando se parte rumo ao nada? A gente tinha tanta certeza de tudo. Era só eu e você. A gente se bastava. O meu mundo girava em torno de você.’ Mas o fim do amor, como foi bem dito por Alan Pauls, nunca é recíproco.



A afinidade do início, a trilha sonora romântica que diz ‘E no meio de tanta gente eu encontrei você, entre tanta gente chata, sem nenhuma graça, você veio. E eu que pensava que não ia me apaixonar nunca mais na vida’ se transforma num lamento que diz ‘Você diz que tudo terminou, você não quer mais o meu querer. Estamos medindo forças desiguais. Qualquer um pode ver que só terminou pra você’.



- E os planos? Onde é que eles ficam? Você disse que queria morar comigo! Combinamos viajar no próximo feriado, lembra? E a decoração do apartamento? Já tínhamos até decidido a cor do sofá!



- Eu disse pra você ir com calma.



Nessa hora tem sempre alguém que pediu pra você ir com calma, pra não fazer tantos planos. Mas como na música Meu Plano da Daniela Mercury, a resposta pode ser: ‘Engano seu achar que fosse brincadeira. Engano seu. Aconteceu de ser assim dessa maneira e o plano é meu. Mesmo sem motivo, sem sentido, sem saber, andei fazendo planos pra você.’



É dessa falta de sintonia que a música de hoje fala. Enquanto um dança valsa. O outro dança bolero.



Gravada pela primeira vez em 1969 no disco Ben Tocado por um dos cantores mais criativos da nossa música, um cara inovador, um dos inventores do samba-rock, mas que também inclui em sua música elementos da bossa nova, do jazz, do maracatu, do funk e do ska. Um artista genuíno, referência musical no Brasil e no mundo, um ariano de talento incontestável (só para constar, tenho muito orgulho de fazer aniversário no mesmo dia que ele), um artista cheio de swing, um compositor versátil capaz de nos levar às lágrimas em algumas canções e ao alegre êxtase da malemolência em outras. Estou falando de Jorge Duílio Lima Meneses. Um cara nascido lá em Madureira e mais conhecido como Jorge Ben Jor. E a música de hoje já é um clássico da MPB, gravada por Daniela Mercury, Fernanda Abreu, Caetano Veloso, Gal Costa, Paulo Ricardo dentre outros. E começa assim:



‘Ela já não gosta mais de mim/Mas eu gosto dela mesmo assim/Que pena, que pena/Ela já não é mais a minha pequena/Que pena, que pena...’



O começo da música fala justamente do que foi dito no início do post, sobre essa não reciprocidade de sentimentos: ‘ela não gosta mais de mim, mas eu gosto dela mesmo assim’. É aquele momento em que você tem que se acostumar com a vida sem aquela outra pessoa que era parte intensa de sua rotina. E o tédio dos dias vindos depois desse término recente é gritante justamente porque ela estava presente de uma maneira até cronológica. Você sabia que ia chegar em casa à noite e receber aquela ligação. Ou então sente essa ausência fisicamente, quando você acende a luz do quarto e está lá aquela cama insuportavelmente bem arrumada com todos os travesseiros no lugar e você procura por aquele cheiro que ainda deve estar em algum lugar. E você que até então era a pessoa mais importante do mundo para esse outro alguém começa a receber pequenos baques cotidianos, quando ele te chama, pela primeira vez, depois de séculos, pelo seu nome. Nada mais normal do que te chamar pelo seu verdadeiro nome, não é? Seria normal, se você já não estivesse acostumada com aquele apelido carinhoso que só você e ele conheciam. E de repente toca aquela música que você costumava aumentar o volume e cantar em alto e bom som. E você pula logo essa faixa porque o que costumava ser bom agora é só um vazio sem esperança.



‘Pois não é fácil recuperar um grande amor perdido/Ela era uma rosa/As outras eram manjericão/Ela era uma rosa que mandava no meu coração.’



E você jura que nunca mais vai se apaixonar de novo. ‘Como é que eu vou encontrar um cara tão legal de novo? Como é que eu vou achar alguém com quem eu tenha tanta afinidade novamente?’ Esse grande amor perdido que a música fala. E grandes amores não se encontram em cada esquina. Acho mesmo que quem já viveu um grande amor tirou a sorte grande. Quem encontrou seu pavão no meio de tantos urubus, fica mais resistente à novas investidas. É normal ficar um pouco descrente quando se perde alguém que valeu a pena. Mas há que ter uma sabedoria na separação, como numa música que escutei outro dia da Julieta Venegas que diz assim:



'Vamos brindar essa despedida com a certeza de ter vivido algo que nos mudou.'


E é exatamente isso que Jorge Ben parece nos dizer na reta final de sua canção:


‘Mas eu não vou chorar/Eu vou é cantar/Pois a vida continua/E eu não quero ficar sozinho no meio da rua/Esperando que alguém me dê a mão.’



Acho fundamental ter essa sabedoria de agir nesses momentos. Porque isso é um fato, a vida continua mesmo. E o mundo não vai parar porque você sofreu uma desilusão amorosa. Quem dera, o mundo fosse tão romântico a ponto de você virar para o seu chefe e dizer: ‘Não posso trabalhar hoje, estou sofrendo por amor’ ou então ‘Não vou trabalhar hoje. Motivo: estou amando e sendo correspondida. Não quero me aborrecer com detalhes mesquinhos do meu cotidiano’. Nessas horas é melhor pensar como Marina em Virgem: Se as coisas não precisam de você, quem disse que eu tinha que precisar? E não, meu bem, o Hotel Marina quando acende não é por nós dois e nem lembra o nosso amor. Então é melhor fazer a roda da vida rodar mais uma vez e o farol da ilha girar de novo e de novo e de novo por outros olhos e armadilhas. Esse sofrimento todo pode ser muito bonito no cinema ou numa tragédia clássica de Tenessee Williams como na cena final e antológica de Um Bonde Chamado Desejo, em que Blanche é amarrada numa camisa de força e levada pelos enfermeiros e, num lampejo de lucidez, solta: ‘Sempre dependi da bondade de estranhos.’ Mas mesmo dependendo da bondade de estranhos, prefiro manter minha dignidade e tal qual Jorge, eu não vou chorar, eu vou é cantar. E não. Não vou ficar sozinho no meio da rua esperando que alguém me dê a mão.



Que pena



Jorge Ben Jor




Ela já não gosta mais de mim

Mas eu gosto
dela mesmo assim
Que pena, que pena

Ela já não é mais a minha pequena

Que pena, que pena

Pois não é fácil recuperar

Um grande amor perdido

Ela era uma rosa

As outras eram manjericão

Ela era uma rosa

Que mandava no meu coração

Ela já não gosta mais de mim

Mas eu gosto
dela mesmo assim
Que pena, que pena

Ela já não é mais a minha pequena

Que pena, que pena

Mas eu não vou chorar

Eu vou é cantar

Pois a vida continua

E eu não ficar sozinho

No meio da rua, esperando que alguém me dê a mão







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