segunda-feira, 27 de junho de 2011

Foi um rio que passou em minha vida


Muito já foi dito nesse blog sobre os amores que deixaram marcas profundas, aquelas cicatrizes que não se esvaem nem com o tempo; sobre amores intensos que machucam a alma, aquele que tal qual Elis Regina canta em Atrás da Porta nos faz agarrar ‘nos teus cabelos, no teu peito, teu pijama, nos teus pés aos pés da cama, sem carinho e sem coberta’. Mas será mesmo que todo término de relação tem que ser assim, sempre uma tragédia, com um mar de lágrimas e, às vezes, até banhado em sangue? Eu, particularmente, acho que não. E outros compositores da nossa música também. Talvez o mestre da leveza (e que alguns chamariam de leviandade) quando o assunto é amor seja mesmo o Cazuza. Já que ele foi o cara que consagrou o exagero do amor inventado. E se inventamos podemos também desinventar, não é certo? Pois como disse Marina Lima em Virgem, se ‘as coisas não precisam de você, quem disse que eu tinha que precisar?’. E se inventamos tudo (há indícios de que até o amor materno é inventado), inventamos também a dor. A vida seria muito banal, se não déssemos a devida profundidade a cada situação. Mas que fique bem claro que em algumas situações (quiçá, na maioria delas) o seu amor é uma mentira que a minha vaidade quer e que se você sair de perto eu vou pensar em suicídio, mas no fundo eu nem ligo. Ou como cantou Maria Rita em Não Vale a Pena ‘é uma pena, mas você não vale a pena, não vale uma fisgada dessa dor, não cabe como rima de um poema de tão pequeno’.

E é sobre isso que a música de hoje fala, sobre um rio que passou em minha vida. Mas, por mais que a correnteza tenha sido arrebatadora, uma febre ou um fogo leve (deve ser da idade!), um rio é sempre um rio, sempre segue o seu fluxo no mesmo sentido. E alguns até secam; deixando apenas a lembrança da fertilidade do que foi um dia. Um rio nunca é um oceano. Uma enchente nunca terá a força de um tsunami. E quando sua água desemboca no mar, e perplexos ficamos com a infinitude das águas salgadas, um rio será só um rio, nada mais que isso.

Essa canção já foi gravada por Roupa Nova, Zizi Possi e mais recentemente pela banda de reggae candanga Maskavo. Foi composta em 1972 por uma dupla que fez história no rock nacional, mais precisamente no rock rural nacional. Como assim rock rural? Isso lá existe? Se você, assim como eu, é um apaixonado por música brasileira, já sabe que estou falando de dois caras que, junto com um terceiro, criou um estilo musical dos mais criativos já vistos nesse país. Criado na década de 70, o rock rural incorporou influências do folk e country anglo-saxônicos ao estilo da toada lusitana, com uma linguagem poética que se refere aos temas do campo, resultando numa musicalidade com ritmo de balada pop. E se você, assim como eu, já teve o seu momento BG (bicho grilo) de pisar os pés na terra, de tomar banho de cachoeira, de usar jeans rasgado, de acender uma fogueira e cantar desafinado numa roda de violão ‘Te amo, espanhola/Se for chorar, te amo’, ‘Pelas ruas onde andas, onde mandas todos nós, somos sempre mensageiros esperando a sua voz’, ‘Eu quero uma casa no campo, do tamanho ideal, pau-a-pique e sapê’, ‘Tudo que move é sagrado e remove das montanhas com todo cuidado, meu amor’, sabe que eu estou falando de Sá, Rodrix e Guarabyra, os três geniais criadores do rock rural que teve adeptos como Flávio Venturini e Beto Guedes. E a música de hoje é do disco Presente Passado Futuro de 1972, se chama Me faça um favor e começa da seguinte maneira:

‘Quero que você me faça um favor/Já que a gente não vai mais se encontrar/Cante uma canção que fale de amor/Que seja bem fácil de se guardar’

Os primeiro versos da canção já denotam o desapego e a leveza da letra. Seu autor constata de uma maneira simples e direta o fim de um vínculo: a gente não vai mais se encontrar. E pede para esse alguém que lhe cante uma canção que fale de amor, mas que seja bem fácil de se guardar. Porque assim é encarado esse término. Sem muitas neuras, mas também sem muito ardor. E por isso a letra fácil de se guardar. Nada a la Andrea Doria, música da Legião Urbana que discorre sobre o fim de um relacionamento cheia de metáforas inclusive no título da música (Andrea Doria é o nome de um navio que naufragou) e sim algo como ‘fácil, extremamente fácil, pra você e eu e todo mundo cantar junto’.

Logo em seguida, vem os versos:

‘Meu amor, o que eu sou, todo mundo vê/Me perdi, me esqueci/Dentro do seu mundo/Procurando a vida com você’

É a afirmação de uma autonomia e de uma individualidade que não existiam na vida a dois, já que depois de declarar que não vai mais encontrar a outra pessoa, o compositor diz ‘o que eu sou, todo mundo vê’. Diferente de quando ainda vivia aquela relação em que se perdeu e se esqueceu, pois estava dentro do mundo do outro – um mundo particular criado pela intimidade dos amantes – procurando a vida. Ou quem sabe procurando pela vida. Já que o simples fato de se procurar algo, deixa mais do que claro que você ainda não encontrou. E procurar a vida significa que você não percebe que ela já está acontecendo todos os dias e que, enquanto se procura por ela sem distração, ela passa todos os dias do seu lado, às vezes lhe sorrindo escancaradamente.

Continuando na canção:

‘Mesmo que as pessoas lembrem de nós/Mesmo que eu me lembre dessa canção/Não vai haver nada pra recordar/Nada que valeu, que houve de bom’

Aqui o autor da canção minimiza a importância da pessoa com quem viveu uma história. Pois, mesmo sendo uma pessoa que tenha feito parte da sua vida, já que dividiram momentos, pessoas, canções comuns, ele reduz a sua influência, negando-lhe o prestígio de ter tido algum poder sobre ele algum dia. O que, de fato, pode ser verdade, considerando que há controvérsias nos versos de Fernando Pessoa quando ele fala que ‘tudo vale a pena...’. Será mesmo? Se olharmos por aquele velho prisma de que aprendemos com o erro, talvez sim. Mas também só por isso. Já que existem pessoas que passam pela nossa vida e que não nos acrescentam nenhum sentimento benéfico como nos sábios versos de Itamar Assumpção cantados magnificamente por Zélia Duncan: ‘Vi, não vivi, não senti onda por ti, não senti nem o menor apetite, não senti o tremelique’.

E por fim, seguem os versos:

‘Meu jardim, seu quintal/Sempre a mesma flor/Hoje não, cada um dentro do seu mundo/Navegando contra a solidão’

É o autor da canção seguindo em frente, lamentando por ter cultivado margaridas no seu jardim só porque de lá também via a mesma flor sendo regada no quintal da outra pessoa. E quando bateu aquela vontade louca de arrancar as margaridas e cultivar rosas vermelhas, esse desejo foi sufocado por ser estranho demais. Mas hoje não! Hoje é cada um dentro do SEU mundo. Vasto, imenso, íntimo, particular mundo. Navegando contra a solidão. Em sua regravação dessa música, Zizi Possi, alterou o último verso para ‘carregando outra solidão’, que a meu ver, ficou mais honesto, já que acho que não devemos navegar contra a solidão. Eu sou/vou contra ao que é nitidamente ruim. E a solidão – quem pode evitar? – não é necessariamente ruim quando fazemos as pazes com ela. Por isso, achei genial a sacada de Zizi em dizer ‘carregando outra solidão’. Porque é só mais uma. Que pode ser diferente da última. Mas sempre será solidão. Que rima com desilusão. Que destoa de emoção. Que não combina com a paixão. Mas que vem acompanhada de conexão. Com você e com o mundo que passa a enxergar com o seu olhar. E não se iluda. Porque, por mais incomum que seja, esse substantivo também se diz no plural. Então até a próxima esquina. Se pelo caminho da direita ou da esquerda, isso eu não sei. Já que pelas ruas que andei, costumo sempre encontrá-las, as solidões.

Ps.: Agora você também pode ler meus textos aqui.


Me faça um favor

Composição: Sá e Guarabira

Quero que você me faça um favor
Já que a gente não vai mais se encontrar
Cante uma canção que fale de amor
Que seja bem fácil de se guardar

Meu amor, o que eu sou, todo mundo vê

Me perdi, me esqueci
Dentro do seu mundo
Procurando a vida com você

Mesmo que as pessoas lembrem de nós

Mesmo que eu me lembre dessa canção
Não vai haver nada pra recordar
Nada que valeu, que houve de bom

Meu jardim, seu quintal
Sempre a mesma flor
Hoje não, cada um dentro do seu mundo
Navegando contra a solidão


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