segunda-feira, 21 de março de 2011

Vai com os anjos. Vai em paz.




É tão estranho, os bons morrem jovens. Assim parece ser quando me lembro de você que acabou indo embora cedo demais.

Todo dia é o mesmo dia. A vida é tão tacanha, nada novo sob o sol. Tem que se esconder no escuro quem na luz se banha por debaixo do lençol.

Você deve estar se perguntando por que abro o post de hoje com músicas tão díspares: a soturna Love in the Afternoon da Legião Urbana e a alegre e solar Luz de Tieta de Caetano Veloso. Talvez porque essas duas canções tenham mais a ver uma com a outra do que possa supor nossa vã filosofia. Já explico.

Uma vez por ano venho para Ervália para visitar minha família. Acredito que a maioria das pessoas que aqui me lêem nunca ouviu falar nesse nome, Ervália. Mas isso é indiferente. Pense em qualquer cidadezinha do interior do Brasil. Uma cidadezinha com 17 mil habitantes, sem o charme das cidades históricas ou daquela cidade do interior cantada por Caetano em Não Identificado. Poderia ser Santana do Agreste, a cidade fictícia criada por Jorge Amado, onde acontece a saga de Tieta. Ou poderia ser qualquer cidade do Brasil, até mesmo algumas capitais. Conheço algumas que prezam pelos mesmos ‘valores’ tão propalados por aqui. Quando disse pr’uma amiga que estava vindo pra cá e contei como as coisas aqui funcionavam, ela disse:’ Não precisa ir muito longe. São Bernardo é a mesma coisa’. Um outro amigo que é de Belo Horizonte também reiterou essa teoria. É assim também em Aracaju, cidade que passei uma temporada. Não quero aqui criar um mal estar em relação à essas cidades. E se você, leitor, é de alguma delas, não se ofenda. Só estou traçando um plano comum que cabe a todos esses lugares: uma forte presença de religiosidade, a defesa pelo moral e bons costumes da família, uma total falta de opção do que se fazer principalmente nos dias de domingo (por aqui, as pessoas sentam no banco da praça e falam da vida alheia), uma melancolia que é varrida para debaixo do tapete, ou melhor, para dentro das gavetas entupidas de tarjas pretas.

Voltando para casa no domingo à noite – tinha ido visitar uma amiga dos tempos da adolescência, hoje casada e com uma filha prestes a completar quatro anos e depois fui dar uma volta pela cidade com uma prima à procura de um lugar para sentar e tomar uma cerveja. Não encontramos nada. Fomos então para a praça, esperando um banco vagar para conversar um pouco. Vã ilusão a nossa achar que iríamos encontrar um banco vago no dia e horário mais concorrido da semana, depois da missa das oito – estava meio melancólico olhando as cores da cidade em que nada lembravam as cores de Almodóvar ou de Frida Khalo cantada por Calcanhoto em Esquadros. Era tudo meio amarronzado. Com o perdão da palavra, tudo meio em tom de bosta. E aquela melancolia externa se fez presente dentro de mim, quando entro em casa e recebo uma ligação da minha irmã: João morreu. Se matou.

João tinha 29 anos no máximo, acredito eu. Era de Leão e fã de Madonna. Durante um ano foi uma das pessoas mais importantes da minha vida. O ano em que dividimos um quarto na República Escândalo em Ouro Preto. O ano em que dividimos conflitos. Dois garotos desorientados, começando a viver, a experienciar coisas que só se vive quando passa por uma faculdade de Artes Cênicas numa cidade como Ouro Preto. Descobertas sexuais, pessoais, profissionais. ‘Não era bem isso que eu queria’. ou ‘Não sei pra onde estou indo, só sei que não estou perdido.’ O primeiro porre. Revelações à meia luz. Surpresas. Descontroles. Amizades leais. Algumas pra vida inteira. Outras se perderam pelo caminho.

Foi assim com João. Ele trancou matrícula e nunca mais nos vimos. O leonino que fazia as posições mais difíceis de ioga com as janelas abertas para demonstrar a flexibilidade do corpo, não teve jogo de cintura para segurar a pressão da família que queria que o filho tivesse uma profissão séria. Foi fazer engenharia.

João era gay. Já desconfiava disso. Mas fiquei sabendo com todas as letras depois por amigos pra quem ele, secretamente, havia confessado esse seu ‘deslize’. João foi embora cedo demais porque teve que se esconder no escuro por se banhar na luz por debaixo do lençol.

Faço coro com Cazuza: Meus heróis morreram de overdose e meus inimigos estão no poder. E cedo demais se foram Cássia Eller, Elis Regina, Tim Maia, Renato Russo, Caio Fernando Abreu. E muitos outros marginais. Espero que você não se assuste aqui com o uso dessa palavra. Dependendo de como você a interpreta, marginal é um elogio. Marginal é só quem vive à margem da sociedade. E quem quer estar dentro desse esquema? Como diria o próprio Caio F., não sei se em Dama da Noite: nesse esquema, é sujo dar certo.

Um dos meus escritores favoritos, Salinger, escreveu uma bela novela sobre o suicídio que já cheguei a comentar aqui. Chama-se Seymor, uma apresentação. Não faço apologia ao suicídio. Tampouco condeno os que se matam. Não sei o que se passa na cabeça de um suicida. Não sinto a dor dele. O problema é quando a pessoa se mata porque já está sendo assassinada, dia-a-dia, aos poucos. Porque as pessoas com as quais convive (muitas vezes a própria família) fazem questão de ignorar traços tão especiais de sua existência. E mais uma vez citando a letra de Luz de Tieta: Todo mundo que saber com quem você se deita. Nada pode prosperar.

Peço desculpas à você que vem acompanhando o blog, pois hoje não tentei decifrar nenhuma música. Ao invés disso, quero apenas postar o vídeo e a letra de Trem das Sete do Raulzito, esse canceriano sem lar, um dos caras mais lúcidos que já passou por esse planeta. E dizer que prefiro acreditar nesse Deus cantado por ele que vem deslizando no céu entre brumas de mil megatons do que nesse Deus punitivo que o cristianismo vem nos pregando há milênios. E dizer que, como na canção, eu também acredito que o mal vem de braços e abraços com o bem num romance astral.

E para fechar com leveza (sim, eu ainda busco por ela) deixo vocês com uma fábula GLS so sweet:

Era uma vez um grupo de amigos gays que estavam viajando juntos pela Europa. Certo dia, eles decidem alugar uma van para conhecer algumas cidadezinhas do interior da Itália. Enquanto passam por aquelas estradinhas sinuosas pedem para o motorista aumentar o som e assim vão brincando, falando besteiras e cantando na maior altura Kylie, Katy Perry, Lady Gaga, Madonna, Pet Shop Boys e Elton John (já que são democráticos e tem uma maricona véia na viagem). No meio da viagem, a van perde o controle e se desgoverna. As bichas entram em pânico. Babado, confusão, gritaria, tiroteio e tapa na cara! João, justo o João, o mais novo da turma, ainda enrustido, que economizou centavo por centavo para fazer essa viagem e disse pra família que estava viajando com os amigos da faculdade, começa a rezar. E quando vê que a van vai despencar ribanceira abaixo, diz: ‘Meu Deus, se eu não morrer, eu juro que eu nunca mais vou ser gay!’

Só que não teve jeito. A van despencou e João morreu. Quando está lá no céu, quietinho, taciturno, cabisbaixo, sentado numa nuvenzinha cinzenta, começa a escutar um bate estaca. Olha pro lado e vê todos os seus amigos numa nuvem vizinha. A nuvem fúcsia é um bafo! Olha pra todos os seus amigos, bichas fervidíssimas. E todas elas gritam em coro: Não é pecado! Não é pecado! Não é pecado!

O Trem das Sete
Composição: Raul Seixas

Ói, ói o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis, olha o trem
Ói, ói o trem, vem trazendo de longe as cinzas do velho éon
Ói, já é vem, fumegando, apitando, chamando os que sabem do trem
Ói, é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem
Quem vai chorar, quem vai sorrir ?
Quem vai ficar, quem vai partir ?
Pois o trem está chegando, tá chegando na estação
É o trem das sete horas, é o último do sertão, do sertão
Ói, olhe o céu, já não é o mesmo céu que você conheceu, não é mais
Vê, ói que céu, é um céu carregado e rajado, suspenso no ar
Vê, é o sinal, é o sinal das trombetas, dos anjos e dos guardiões
Ói, lá vem Deus, deslizando no céu entre brumas de mil megatons
Ói, olhe o mal, vem de braços e abraços com o bem num romance astral
Amém

3 comentários:

  1. "Eu que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar" - habitantes de Ervalia, São Bernardo ou qualquer coisa que o valha.
    Fica bem! Amo vc!
    PS. Amanhã dois grandes idolos meus fazem aniversário: Elton e Ricardo

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  2. Viçosa tava melhor q Ervália, Ricardo!!!Vem p ká rsrsrsrs

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  3. Anália, já tô voltando pra SP amanhã, hehe. Se cadastra aqui pra seguir o blog. A Marizabel falou que vc sempre lê os meus posts. Fico muito agradecido. Eu vou sortear entre os seguidores, a biografia do Lobão - 50 anos a mil. Bjo.

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