quarta-feira, 30 de março de 2011

Enquanto espero acontecer


‘Se você não se distrai, a estrela não cai. O elevador não chega e as horas não passam. O dia não nasce, a lua não cresce. A paixão vira peste; o abraço, armadilha.’ – Distração, Zélia Duncan

‘É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado. ’ – Carta ao Zézim, Caio Fernando Abreu.

O que Zélia Duncan e Caio Fernando Abreu parecem querer nos dizer é mais ou menos como a história da menina que caçava borboletas. Aquela menina já havia pegado algumas borboletas das mais variadas cores, mas havia uma em especial, azulada, um tom de azul que parecia ser único em sua exuberância em toda a fauna do planeta, que ela ainda almejava. E todos os dias a menina acordava determinada e pensava: ‘É hoje! Me empenho tanto! Eu mereço!’ O tempo foi passando e nada. Às vezes chegava perto com sua rede, mas o inseto fugia arredio. Outras vezes passava o dia inteirinho à espera e nem uma visitinha do objeto de seus sonhos. Até o dia em que exaurida de tanto procurar, com sede e calor, caiu no sono. Eis que quando acordou, a borboleta estava lá, pousada em sua barriga pueril.

Segundo o zen budismo, distração e conexão são ações similares como sugere essa frase da Monja Coen: ‘Ao tomar conhecimento da distração, mergulhei no presente’. Paradoxal? Acredito que não, se partirmos do princípio de que distração é o oposto de pré-ocupação. Uma pessoa distraída está mais aberta para vivenciar o agora simplesmente porque está relaxada. O que não quer dizer que não esteja consciente. Já uma pessoa pré-ocupada, e que alguns gostam de chamar de focados, focam tanto num mesmo ponto que acabam deixando despercebido tudo mais que está ao redor. Assim, se você está focado no emprego, não tem tempo pro amor. Se está focado no seu relacionamento, o trabalho vai mal. Se está focado planejando aquela viagem, esquece de fazer sua dissertação.

A espera inerte faz com que percamos boa parte do aprendizado. Você acha a palavra ESPERANÇA bonita? Mas quanto de expectativa e frustração não vem junto com ela. Esperança e serenidade parecem estar em lados diametralmente opostos. É o que nos diz a música de hoje que, na minha opinião, é a música de amor brasileira mais bonita de todos os tempo, justamente porque fala de um amor utópico, ideal e que poucos terão a sorte de viver. Descarte as opções mais óbvias como ‘Eu sei que vou te amar’ do Vinícius ou ‘Como é grande meu amor por você’ do Roberto. Talvez você nem tenha dado a devida atenção à letra dessa canção. Quer uma dica? Leia o título do post anterior. Pronto? Não foi uma dica, né? Foi uma cola. Sim, é exatamente essa música que pretendo hoje decifrar: Se fiquei esperando meu amor passar da Legião Urbana. Se você me acompanha desde o início desse blog, deve estar se perguntando: ‘Pô, Legião Urbana de novo?’ Eu sei que o blog tem uma vida muito curta para eu repetir um artista e que no Brasil existe uma gama de artistas geniais consideráveis para serem explorados. Mas tenho que confessar minha idolatria por essa banda e principalmente pelo seu líder, Renato Russo, um dos mais brilhantes compositores do nosso pop. E pedir paciência a você que me acompanha, pois ainda tenho muitas cartas na manga e vários artistas que eu admiro profundamente e quero aqui discuti-los com vocês. Quer ver uma letra decifrada? Sugira.

Voltando a letra de hoje, ela é dividida em duas partes. Cada uma começa com a frase que dá título à música e são as duas estrofes seguintes:

Se fiquei esperando meu amor passar/Já me basta que então/Eu não sabia amar/E me via perdido e vivendo em erro/Sem querer me machucar de novo por culpa do amor

Se fiquei esperando meu amor passar/Já me basta que estava então longe de sereno/E fiquei tanto tempo duvidando de mim/Por fazer amor fazer sentido

Conversando com um amigo no último domingo, em que eu estava especialmente melancólico, lhe lancei a seguinte pergunta: Por que é tão difícil ficar sozinho? Ele não soube me responder, claro. E acredito que essa seja uma pergunta que não vamos obter uma resposta tão cedo, se obtivermos, é bom que isso fique claro. Por isso acho esses versos tão geniais, porque Renato nos fala de uma questão que sempre será atual: essa total ausência de auto-estima que a falta de alguém nos traz. Por que precisamos tanto do outro para nos validarmos como pessoa? E muitas vezes esse outro nem é a pessoa mais especial do mundo, é o primeiro que aparece na sua frente e vai tapar o buraco da sua carência. Tudo bem que no começo de qualquer relação, temos uma tendência a projetar todos os nossos desejos no outro. E assim o loser de amanhã é o príncipe encantado de hoje. Por isso, prefiro buscar essa serenidade para que eu possa ter a sorte de um amor tranqüilo com sabor de fruta mordida.

E não vou mais duvidar de mim por fazer amor fazer sentido. Por que não deu certo? É a pergunta que todo mundo se faz. Sabe qual é a explicação pra essa pergunta? A explicação é que não tem explicação. Não deu certo porque não deu e não tem que ficar remoendo. E quando aparecer a pessoa certa, você irá saber, acredite. Não é Hollywood, é intuição.

Como na canção:

Mas você e eu podemos namorar/E era simples: ficamos fortes/Quando se aprende a amar/O mundo passa a ser seu/ Sei rimar romã com travesseiro/Quero minha nação soberana com espaço, nobreza e descanso

Gosto muito desse trecho porque me identifico bastante com ele. E por isso comentei lá em cima que, na minha opinião, essa é a música de amor mais bonita do nosso pop. Porque, pra mim, isso é o amor. Quando duas pessoas se encontram e se complementam sem se anular. E tudo é tão simples porque existe uma afinidade, uma completude. Estão juntas porque se atraem intelectual e sexualmente. Duas pessoas assim, dispostas lado a lado são como uma fortaleza. E o mundo passa a ter o seu encanto como nos canta Elton John em Your Song: How wonderful life is now you're in the world. E as coisas mais complicadas se tornam simples, como, por exemplo, rimar romã com travesseiro. E esse amor, diferente da paixão, não é alienante tampouco egoísta, é generoso, você enxerga além da sua vida íntima: quer a sua nação soberana, com espaço, nobreza e descanso.

Mas será que cabe tantas qualidades dentro de um amor? Acho que essa é uma missão difícil para nós, meros mortais. Por isso disse que, além de achar a letra linda, também a acho utópica. O próprio Renato Russo não chegou a viver esse amor e se lamentava por isso. O nosso trovador solitário era um sonhador incansável, mas jogou a toalha no fim da vida. Renato vivia se lamentando que era adorado por milhões de fãs, mas que quando ia pro quarto de hotel tinha que dormir sozinho. Mas acredito que teve uma missão maior que foi ser mesmo um Messias para diversas gerações de adolescentes. Nessa fase da vida em que estamos tão desorientados encontrar um anti-herói que não queria ser exemplo de nada talvez seja libertador. E assim era Renato Russo: ao mesmo tempo em que era uma máquina verborrágica em cima do palco, cuspindo frases desconexas sobre qualquer coisa (conflito na faixa de Gaza entre Israel e Palestina, bandas de rock, massificação da TV) era uma criança tímida e complexada. Com uma sensibilidade aguçadíssima, via o que quase ninguém via e, por isso, cantava o amor em suas mais diferentes manifestações, porque cantando podia vivê-lo um pouco. Nem que fosse esse amor-idolatria que recebia de sua platéia que chegou a rebatizar a banda com a alcunha de Religião Urbana.

Renato abre o disco V da Legião com um poema medieval do século XIII que ele nomeou de Love Song que dizia o seguinte: Pois nasci, nunca vi amor/E ouço dele sempre falar.

E com esse mesmo olhar de melancolia acrescido de misericórdia, ele encerra a letra de Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar pedindo piedade para nós, tolos humanos, que, muitas vezes, nos unimos uns aos outros por vieses tão tortos. O olhar turvo da carência não nos deixa enxergar o outro como ele realmente é.

Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo, tende piedade de nós
Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo, tende piedade de nós
Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo, dai-nos a paz

Ou como diria Cazuza, outro incontestável poeta do pop:

Vamos pedir piedade
Pra quem não sabe amar
Fica esperando alguém que caiba nos seus sonhos
Como varizes que vão aumentando
Como insetos em volta da lâmpada

Ps.: Dia 15/02 irá acontecer o sorteio do livro 50 anos a mil, a biografia do Lobão entre os seguidores do blog. Interessados, corram! Ainda dá tempo!



Se fiquei esperando meu amor passar

Composição: Dado Vila-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá

Se fiquei esperando meu amor passar
Já me basta que então eu não sabia
amar
E me via perdido e vivendo em erro

Sem querer me machucar de novo

Por culpa do amor

Mas você e eu podemos namorar

E era simples: ficamos fortes
Quando se aprende a amar
O mundo passa a ser seu

Quando se aprende a amar

O mundo passa a ser seu

Sei rimar romã com travesseiro

Quero a minha nação soberana

Com espaço, nobreza e descanso

Se fiquei esperando meu amor passar

Já me basta que estava então longe de sereno

E fiquei tanto tempo duvidando de mim

Por fazer amor fazer sentido
Começo a ficar livre
Espero. Acho que sim
De olhos fechados não me vejo
E você sorriu pra mim

Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo,

Tende piedade de nós.

Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo,
Tende piedade de nós.

Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo,

Dai-nos a paz.



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