quarta-feira, 16 de março de 2011

O bom encontro é de dois




“O nosso amor a gente inventa pra se distrair. E quando acaba a gente pensa que ele nunca existiu”. Sábias são as palavras do poeta do rock, nosso controverso Cazuza. Atire a primeira pedra quem aqui nunca inventou um amor. Se a vida é sonho e os sonhos, sonhos são, como diria Calderon de La Barca, não é só o amor que a gente inventa não, e sim toda uma gama de sentimentos que pode passar desde o mais frio desprezo a mais intensa das paixões. E por que inventamos tanto esses amores e desamores e dissabores? Porque inventar faz parte do estar vivo. Nunca deixamos de brincar. As brincadeiras só mudam de nome quando nos tornamos adultos. Inventar é essencial. A vida é muito banal. Acordar todos os dias e fazer tudo sempre igual é monótono e entediante. E se Garcia Marquez está certo, a vida não é a que a gente vive e sim a que a gente lembra e como lembra para contá-la. Desse modo, um simples encontro casual acaba se tornando um encontro de almas, um adeus esperado se torna um desmoronamento de emoções com direito a arranca rabos e o carro do outro inteirinho riscado.

Nesse constante inventar, há os que são mais polidos. E há os que não têm limites para a intensidade. Se você faz parte do primeiro time, arrisque-se um pouquinho mais. Cicatrizes são necessárias e dão um tempero (amargo ou doce) à vida. Se faz parte do segundo, cuidado para não inventar demais e acabar enfiando os pés pelas mãos. Explicando melhor, tem gente que inventa tanto que, às vezes, nem ela acredita na própria invenção. Nessa constante luta contra o desamparo de ser só, forçamos tanto a barra que acabamos por nos unir a alguém que não tem absolutamente nada a ver com a gente. Aquela velha história do ‘não sou feliz, mas tenho marido’. Aqui, eu falo de afinidade. Porque só com afinidade se pode ter intimidade. Pelo menos assim deveria ser. Ou como diziam os antigos: ‘Case-se com quem você goste de conversar’. Porque no fim das contas, é só o que fica.

E é sobre isso que a música de hoje fala. Sobre aquele bom encontro de dois. Nesses tempos de intimidade forçada e relações tão superficiais onde conversar com alguém durante dez minutos antes de ir para cama é quase um ato em extinção, a música de hoje é um bálsamo, um oásis nesse deserto de almas desequilibradas. Gravada em 1988 pelo rei do pop brasileiro, nosso luxuosíssimo Lulu Santos, no álbum que tem o mesmo nome da música, Toda Forma de Amor.

Lulu compôs a letra da música em homenagem à sua parceira de vida, Scarlett Moon e é da relação dos dois que ela fala. Em diversas entrevistas, Lulu faz questão de enaltecer essa relação, como nesse trecho concedido para a Istoé Gente: Não moro na mesma casa da Scarlet, mas a minha relação é com ela. É melhor que casamento. A gente optou por ser higienicamente separado de teto, mas a minha referência afetiva é ela. Fiz a opção para ter mais espaço, para despromiscuizar a relação. Para ficar mais higiênico para mim e para ela. Pessoal e psiquicamente, de toda forma. Para cada um garantir sua individualidade.

Voltando à música, acho que sua letra começa de uma maneira bem forte, quase como um protesto: Eu não pedi pra nascer/Eu não nasci pra perder. E seu autor segue dizendo que não está para brincadeira, que não vai sobrar de vítima das circunstâncias. Está na ativa, desperto, esperto, plugado na vida. Machucado, mas curando a ferida. E termina essa estrofe dizendo que, às vezes, se sente uma mola encolhida. Em algumas versões, Lulu também canta ‘bala perdida’. Seja qual for a expressão que você goste de usar, as duas têm uma similaridade. Tanto uma mola encolhida quanto uma bala perdida não exercem a função que originalmente deveriam exercer. A mola de propulsionar alguma coisa, tirá-la do fundo do poço, talvez. A bala, se é perdida, não atinge seu objetivo. Já que toda bala realizada, creio eu, queria ser o objeto de um tiro certeiro. E assim acuado como uma mola encolhida ou confuso como uma bala perdida, Lulu parte para a próxima estrofe onde as coisas começam a acontecer. É justamente a estrofe em que começa a falar do seu oposto complementar, da outra parte podre da maçã:

Você é bem como eu/Conhece o que é ser assim/ Só que dessa história ninguém sabe o fim

Aqui Lulu fala do que disse no começo do texto, da tão falada afinidade, de sintonia, de se reconhecer no outro. Podemos até ser feitos de matérias diferentes, mas quando começamos a nos relacionar com alguém é preciso uma natural identificação e, principalmente, admiração. Aqui não cabem raspas e restos, tampouco migalhas. É preciso enxergar o outro de frente, sem lupas ou binóculos. Admirar é isso. Como diz Pitty em Equalize: Eu acho que eu gosto mesmo de você/Bem do jeito que você é. Admiração, creio eu, é o melhor elogio que se pode dar a qualquer pessoa.

Continuando na canção nos deparamos com os versos seguintes:
Você não leva pra casa/E só traz o que quer/Eu sou seu homem/Você é minha mulher/E a gente vive junto/E a gente se dá bem/Não desejamos mal a QUASE ninguém/E a gente vai à luta e conhece a dor/Consideramos justa TODA forma de amor.

Acho que esse trecho fala de uma relação muito bem resolvida, onde existe liberdade de escolhas e autonomia (Você não leva pra casa/E só traz o que quer). Uma relação talvez permeada pela posse e pelo ciúme (meu homem/minha mulher) e honesta ao ponto de dizer que ‘não desejamos mal a quase ninguém’. Quem está incluído nesse ‘quase ninguém’, sabe-se lá. Talvez uma pessoa do passado, algum abutre que insiste em colocar olho grande numa relação bonita, vá saber. Uma relação de altos e baixos, de persistência, de luta, de dor. E por fim, um casal sexualmente bem resolvido, que considera justa TODA forma de amor.

Se você me acompanhou até aqui, peço a gentileza de ler algumas definições do Houaiss para a palavra afinidade:

1 tendência a combinar-se
2 coincidência ou semelhança de gostos, interesses, sentimentos etc.
3 ponto ou série de pontos comuns entre duas coisas da mesma espécie
4 atração, simpatia, originadas na identidade de interesses

Se você está conhecendo alguém agora e não identificou nenhuma das características citadas acima nesse início de relacionamento, melhor pular fora dessa canoa furada remando contra a maré.

Mas se identificou todas ou quase todas das definições, siga em frente porque como diria a bruxa Elizabeth Gilbert:

"Todo casal do mundo tem o potencial de se tornar, com o tempo, um pequeno país isolado com dois habitantes, criando uma cultura própria, uma linguagem própria, um código moral próprio do qual ninguém mais pode participar".

Dedico esse post à Mayne Benedetto e Denis Fiorentin, um dos casais mais afinados que conheço.

Toda Forma de Amor

Composição: Lulu Santos

Eu não pedi pra nascer
Eu não nasci pra perder
Nem vou sobrar de vítima
Das circunstâncias
Eu tô plugado na vida
Eu tô curando a ferida
Às vezes eu me sinto
Uma mola encolhida

Você é bem como eu
Conhece o que é ser assim
Só que dessa história
Ninguém sabe o fim
Você não leva pra casa
E só traz o que quer
Eu sou teu homem
Você é minha mulher

E a gente vive junto
E a gente se dá bem
Não desejamos mal a quase ninguém
E a gente vai à luta
E conhece a dor
Consideramos justa toda forma de amor

Um comentário:

  1. Rick,

    Obrigada. Não quero que isso soe como uma troca de elogios, mas depois de ler esse post confirmo o que já achava sobre você, ou melhor, sobre sua alma. Você possui uma sensibilidade única, e raramente encontrada.
    Um homem com uma alma doce, que consegue ver através dos olhos do outro, que consegue permeá-los, senti-los.
    Quero que esse blog prospere, assim como desejo que você prospere.
    Fico feliz que você enxergue como eu e meu bem nos sentimos. É amor.
    Muitos beijos

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