domingo, 13 de março de 2011

Sorrateira Alegria


Precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica tarde demais.

Abro o post de hoje com o trecho de Precisa-se da Clarice Lispector porque também eu quero dividir essa minha alegria fugidia, mas que estranha e teimosamente, tem insistido em ficar alguns dias comigo. Tenho percebido uma certa nostalgia geral nas pessoas que me cercam. Também pudera. É paulada atrás de paulada. Já não se encontram os sonhos nem nos lugares antes destinados a vendê-los. Porque os sonhos, essa matéria prima das ilusões, têm ficado cada vez mais escassos. Mas parafraseando, Elisa Lucinda, se a coisa está degringolando, só de sacanagem mais otimista eu vou ficar. Quero ser insistente, quero ver até onde vai o meu limite.

Não se trata de alienação. De tampar o sol com a peneira e fingir que os problemas não existem. Justo pelo contrário. Quero encará-los de frente e dar a devida proporção a eles. Sentir a dor. Encher o peito de angústia. Ficar com ela tempo suficiente para que ela enjoe de minha alma e vá procurar por outra mais desafortunada. É isso que desejo para todos os meus. Força sempre! Era a frase que Renato Russo escrevia em todos os seus autógrafos. Renato não estava sozinho. Junto com ele, vários outros compositores brasileiros bradaram palavras de superação. Foi assim com Frejat que, para superar a morte do amigo Cazuza, compôs os versos de O poeta está vivo: Baby, compre o jornal/E vem ver o sol/Ele continua a brilhar/Apesar de tanta barbaridade. Raul Seixas também nos instigou a seguir adiante em Tente Outra Vez: Levante sua mão sedenta/E recomece a andar/Não pense que a cabeça agüenta se você parar/Não!Não!Não!Não!Não!Não!/ Há uma voz que canta/Uma voz que dança/Uma voz que gira/Bailando no ar.

Escolhi a música de hoje justamente pelo que a letra tem de forte, de superação e de alegre e preciso urgentemente repartir essa minha alegria com vocês antes que ela se esvaia completamente. Composta pelo Leoni, essa canção ganhou uma reverberação poderosa na voz de uma das maiores artistas brasileiras. E aqui abro outro parágrafo porque tenho que ser condizente com a grandeza dessa estrela.

Ela apareceu para o Brasil em 1992 com o hit O Canto da Cidade. Já tinha um disco lançado anteriormente que também emplacou o hit Swing da Cor. Mas foi com O Canto da Cidade que essa baiana, na época com 27 anos, literalmente abalou as estruturas de um dos maiores museus do mundo fazendo um show no vão livre do MASP. O show reuniu mais de trinta mil espectadores, o que acabou por deixar o trânsito engarrafado nas imediações do local. Após quarenta minutos de show, foi retirada do palco por representantes da secretaria de turismo de São Paulo, que, preocupados com a estrutura do museu, obtiveram uma ordem da polícia militar para retirá-la do local. Após o show, ela que até então não tinha gravadora, foi contratada pela Sony e começou a fazer um sucesso estrondoso atingindo o topo das paradas em todas as rádios brasileiras, quebrando uma massificação que já vinha ocorrendo há algum tempo com a hegemonia das duplas sertanejas. Essa artista chegou para romper. Mas também para agregar valores de sua cultura e exportá-los para o mundo, que, aliás, só ficou sabendo que no Brasil se fazia música pop contemporânea depois de sua chegada. Ao mesmo tempo em que tem um trabalho primoroso de pesquisa em todos os seus discos e espetáculos, trazendo o ritmo do samba reggae, do Olodum, do Ilê Ayê para o seu repertório, também busca concatenações com artistas diversos e tão multifacetados quanto ela. Ela que já cantou com Ray Charles, Paul McCarteney e com o maestro Tom Jobim, sendo chamada de rainha por ele. A rainha da alegria, a rainha da Bahia, a rainha do Brasil. Daniela Mercury.

Voltando à música de hoje, ela se chama Temporada das Flores e é a segunda faixa do álbum MTV ao Vivo – Eletrodoméstico. E começa da seguinte maneira: Que saudade!/Agora me aguardem/Chegaram as tardes de sol a pino/Pelas ruas, flores e amigos/Me encontram vestindo meu melhor sorriso. Gosto da primeira frase da música ter essa palavra – saudade – que é uma palavra que só existe em português e de cara já nos contextualiza com essa situação de reclusão vivida pelo narrador que, logo em seguida, nos dá um indício de que a volta por cima já está sendo arquitetada, afinal de contas, ele está vestindo seu melhor sorriso.

Para o filósofo André Comte-Sponville, a felicidade é algo inalcançável porque ela é independe de nós e está diretamente relacionada a algo externo que é o desejo. E todo desejo nunca se sustém porque ele está ligado à falta. A partir do momento em que ‘realizamos’ esse desejo, já nos sentimos saciados e, portanto, vazios, e assim continuamos nessa busca incessante. Mas para esse mesmo filósofo, existem dois sentimentos que podem ser sentidos em sua plenitude porque esses sim dependem de nós. São eles, o prazer e a alegria. Prazer e alegria existem quando desejamos o que fazemos, o que é, o que não falta. Sponville define isso como felicidade em ato. Para ele, a esperança é um desejo que não depende de nós, enquanto a vontade (que é de onde advém o prazer e a alegria) é um desejo que depende de nós. É o que parece nos dizer o próximo trecho da música: Eu passei um tempo andando no escuro/Procurando não achar as respostas/Eu era a causa e a saída de tudo/Eu cavei como um túnel meu caminho de volta.

E continua com a seguinte estrofe: Eu te trago um milhão de presentes/Que eu achava que já tinha perdido/Mas estavam na mesma gaveta/Que o calor das pessoas e o amor pela vida. Que tais presentes perdidos são esses a que a música se refere? Talvez sejam os presentes que nós mesmos deixamos de nos dar, nos proporcionando tão poucas surpresas no nosso cotidiano. Nenhuma surpresa dentro de uma caixa prateada com um laço de fita de cetim. Deixamos de ser generosos conosco e, conseqüentemente com o outro. Mas nesse processo de ressurgimento, começamos a ver ao invés de somente enxergar, ouvir ao invés de apenas escutar. Nos conhecendo, conhecemos o outro. E então passamos a sentir o calor das pessoas e amor pela vida.

E como diria Mayne Benedetto, viver é ter curiosidade. E quanto mais curioso se fica, mais fome se tem. E nessa fome desmedida, nessa vontade de engolir o mundo, vamos re-descobrindo o prazer de se ter prazer. De se maravilhar. Com o diferente. Com o novo. Com a mente aberta. Despertos. Como diria Caetano e Gil em Divino Maravilhoso regravada por Daniela: É preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte.

E assim seguimos, nesse exercício constante de enganá-la, a dona Morte, essa única certeza inabalável. Mas que o caminho não seja duro demais. Sou do ponto de vista de que tudo é relativo e que o grande problema de hoje será o simples contratempo de amanhã. Prepare o campo e sua alma para as flores. Porque elas enfeitam o caminho, mesmo fora de estação. E seja autêntico, isso é importante para que a gente um dia acredite nos rumores quando ouvir falar no seu nome.

Temporada das Flores

Composição: Leoni

Que saudade! Agora me aguardem
Chegaram as tardes de sol a pino
Pelas ruas, flores e amigos
Me encontram vestindo meu melhor sorriso

Eu passei um tempo andando no escuro
Procurando não achar as respostas
Eu era a causa e a saída de tudo
E eu cavei como um túnel meu caminho de volta

Me espera, amor, que estou chegando
Depois do inverno a vida em cores
Me espera amor, nossa temporada das flores

Eu te trago um milhão de presentes
Que eu achava que já tinha perdido
Mas estavam na mesma gaveta
Que o calor das pessoas e o amor pela vida

Me espera estou chegando com fome
Preparando o campo e a alma pra as flores
E quando ouvir alguém falar no meu nome
Eu te juro que pode acreditar nos rumores

Me espera, amor, que estou chegando,
Depois do inverno a vida em cores,
Me espera amor, nossa temporada das flores.



Um comentário:

  1. Amei demais. E decidi que só de sacanagem mais otimista eu vou ficar. Lindo texto, fiquei alegre, otimista hehehe

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