quarta-feira, 30 de março de 2011

Enquanto espero acontecer


‘Se você não se distrai, a estrela não cai. O elevador não chega e as horas não passam. O dia não nasce, a lua não cresce. A paixão vira peste; o abraço, armadilha.’ – Distração, Zélia Duncan

‘É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado. ’ – Carta ao Zézim, Caio Fernando Abreu.

O que Zélia Duncan e Caio Fernando Abreu parecem querer nos dizer é mais ou menos como a história da menina que caçava borboletas. Aquela menina já havia pegado algumas borboletas das mais variadas cores, mas havia uma em especial, azulada, um tom de azul que parecia ser único em sua exuberância em toda a fauna do planeta, que ela ainda almejava. E todos os dias a menina acordava determinada e pensava: ‘É hoje! Me empenho tanto! Eu mereço!’ O tempo foi passando e nada. Às vezes chegava perto com sua rede, mas o inseto fugia arredio. Outras vezes passava o dia inteirinho à espera e nem uma visitinha do objeto de seus sonhos. Até o dia em que exaurida de tanto procurar, com sede e calor, caiu no sono. Eis que quando acordou, a borboleta estava lá, pousada em sua barriga pueril.

Segundo o zen budismo, distração e conexão são ações similares como sugere essa frase da Monja Coen: ‘Ao tomar conhecimento da distração, mergulhei no presente’. Paradoxal? Acredito que não, se partirmos do princípio de que distração é o oposto de pré-ocupação. Uma pessoa distraída está mais aberta para vivenciar o agora simplesmente porque está relaxada. O que não quer dizer que não esteja consciente. Já uma pessoa pré-ocupada, e que alguns gostam de chamar de focados, focam tanto num mesmo ponto que acabam deixando despercebido tudo mais que está ao redor. Assim, se você está focado no emprego, não tem tempo pro amor. Se está focado no seu relacionamento, o trabalho vai mal. Se está focado planejando aquela viagem, esquece de fazer sua dissertação.

A espera inerte faz com que percamos boa parte do aprendizado. Você acha a palavra ESPERANÇA bonita? Mas quanto de expectativa e frustração não vem junto com ela. Esperança e serenidade parecem estar em lados diametralmente opostos. É o que nos diz a música de hoje que, na minha opinião, é a música de amor brasileira mais bonita de todos os tempo, justamente porque fala de um amor utópico, ideal e que poucos terão a sorte de viver. Descarte as opções mais óbvias como ‘Eu sei que vou te amar’ do Vinícius ou ‘Como é grande meu amor por você’ do Roberto. Talvez você nem tenha dado a devida atenção à letra dessa canção. Quer uma dica? Leia o título do post anterior. Pronto? Não foi uma dica, né? Foi uma cola. Sim, é exatamente essa música que pretendo hoje decifrar: Se fiquei esperando meu amor passar da Legião Urbana. Se você me acompanha desde o início desse blog, deve estar se perguntando: ‘Pô, Legião Urbana de novo?’ Eu sei que o blog tem uma vida muito curta para eu repetir um artista e que no Brasil existe uma gama de artistas geniais consideráveis para serem explorados. Mas tenho que confessar minha idolatria por essa banda e principalmente pelo seu líder, Renato Russo, um dos mais brilhantes compositores do nosso pop. E pedir paciência a você que me acompanha, pois ainda tenho muitas cartas na manga e vários artistas que eu admiro profundamente e quero aqui discuti-los com vocês. Quer ver uma letra decifrada? Sugira.

Voltando a letra de hoje, ela é dividida em duas partes. Cada uma começa com a frase que dá título à música e são as duas estrofes seguintes:

Se fiquei esperando meu amor passar/Já me basta que então/Eu não sabia amar/E me via perdido e vivendo em erro/Sem querer me machucar de novo por culpa do amor

Se fiquei esperando meu amor passar/Já me basta que estava então longe de sereno/E fiquei tanto tempo duvidando de mim/Por fazer amor fazer sentido

Conversando com um amigo no último domingo, em que eu estava especialmente melancólico, lhe lancei a seguinte pergunta: Por que é tão difícil ficar sozinho? Ele não soube me responder, claro. E acredito que essa seja uma pergunta que não vamos obter uma resposta tão cedo, se obtivermos, é bom que isso fique claro. Por isso acho esses versos tão geniais, porque Renato nos fala de uma questão que sempre será atual: essa total ausência de auto-estima que a falta de alguém nos traz. Por que precisamos tanto do outro para nos validarmos como pessoa? E muitas vezes esse outro nem é a pessoa mais especial do mundo, é o primeiro que aparece na sua frente e vai tapar o buraco da sua carência. Tudo bem que no começo de qualquer relação, temos uma tendência a projetar todos os nossos desejos no outro. E assim o loser de amanhã é o príncipe encantado de hoje. Por isso, prefiro buscar essa serenidade para que eu possa ter a sorte de um amor tranqüilo com sabor de fruta mordida.

E não vou mais duvidar de mim por fazer amor fazer sentido. Por que não deu certo? É a pergunta que todo mundo se faz. Sabe qual é a explicação pra essa pergunta? A explicação é que não tem explicação. Não deu certo porque não deu e não tem que ficar remoendo. E quando aparecer a pessoa certa, você irá saber, acredite. Não é Hollywood, é intuição.

Como na canção:

Mas você e eu podemos namorar/E era simples: ficamos fortes/Quando se aprende a amar/O mundo passa a ser seu/ Sei rimar romã com travesseiro/Quero minha nação soberana com espaço, nobreza e descanso

Gosto muito desse trecho porque me identifico bastante com ele. E por isso comentei lá em cima que, na minha opinião, essa é a música de amor mais bonita do nosso pop. Porque, pra mim, isso é o amor. Quando duas pessoas se encontram e se complementam sem se anular. E tudo é tão simples porque existe uma afinidade, uma completude. Estão juntas porque se atraem intelectual e sexualmente. Duas pessoas assim, dispostas lado a lado são como uma fortaleza. E o mundo passa a ter o seu encanto como nos canta Elton John em Your Song: How wonderful life is now you're in the world. E as coisas mais complicadas se tornam simples, como, por exemplo, rimar romã com travesseiro. E esse amor, diferente da paixão, não é alienante tampouco egoísta, é generoso, você enxerga além da sua vida íntima: quer a sua nação soberana, com espaço, nobreza e descanso.

Mas será que cabe tantas qualidades dentro de um amor? Acho que essa é uma missão difícil para nós, meros mortais. Por isso disse que, além de achar a letra linda, também a acho utópica. O próprio Renato Russo não chegou a viver esse amor e se lamentava por isso. O nosso trovador solitário era um sonhador incansável, mas jogou a toalha no fim da vida. Renato vivia se lamentando que era adorado por milhões de fãs, mas que quando ia pro quarto de hotel tinha que dormir sozinho. Mas acredito que teve uma missão maior que foi ser mesmo um Messias para diversas gerações de adolescentes. Nessa fase da vida em que estamos tão desorientados encontrar um anti-herói que não queria ser exemplo de nada talvez seja libertador. E assim era Renato Russo: ao mesmo tempo em que era uma máquina verborrágica em cima do palco, cuspindo frases desconexas sobre qualquer coisa (conflito na faixa de Gaza entre Israel e Palestina, bandas de rock, massificação da TV) era uma criança tímida e complexada. Com uma sensibilidade aguçadíssima, via o que quase ninguém via e, por isso, cantava o amor em suas mais diferentes manifestações, porque cantando podia vivê-lo um pouco. Nem que fosse esse amor-idolatria que recebia de sua platéia que chegou a rebatizar a banda com a alcunha de Religião Urbana.

Renato abre o disco V da Legião com um poema medieval do século XIII que ele nomeou de Love Song que dizia o seguinte: Pois nasci, nunca vi amor/E ouço dele sempre falar.

E com esse mesmo olhar de melancolia acrescido de misericórdia, ele encerra a letra de Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar pedindo piedade para nós, tolos humanos, que, muitas vezes, nos unimos uns aos outros por vieses tão tortos. O olhar turvo da carência não nos deixa enxergar o outro como ele realmente é.

Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo, tende piedade de nós
Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo, tende piedade de nós
Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo, dai-nos a paz

Ou como diria Cazuza, outro incontestável poeta do pop:

Vamos pedir piedade
Pra quem não sabe amar
Fica esperando alguém que caiba nos seus sonhos
Como varizes que vão aumentando
Como insetos em volta da lâmpada

Ps.: Dia 15/02 irá acontecer o sorteio do livro 50 anos a mil, a biografia do Lobão entre os seguidores do blog. Interessados, corram! Ainda dá tempo!



Se fiquei esperando meu amor passar

Composição: Dado Vila-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá

Se fiquei esperando meu amor passar
Já me basta que então eu não sabia
amar
E me via perdido e vivendo em erro

Sem querer me machucar de novo

Por culpa do amor

Mas você e eu podemos namorar

E era simples: ficamos fortes
Quando se aprende a amar
O mundo passa a ser seu

Quando se aprende a amar

O mundo passa a ser seu

Sei rimar romã com travesseiro

Quero a minha nação soberana

Com espaço, nobreza e descanso

Se fiquei esperando meu amor passar

Já me basta que estava então longe de sereno

E fiquei tanto tempo duvidando de mim

Por fazer amor fazer sentido
Começo a ficar livre
Espero. Acho que sim
De olhos fechados não me vejo
E você sorriu pra mim

Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo,

Tende piedade de nós.

Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo,
Tende piedade de nós.

Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo,

Dai-nos a paz.



sexta-feira, 25 de março de 2011

Se fiquei esperando meu amor passar




Tom Jobim cantou que fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho. E a humanidade parece fazer coro com ele. Uma pessoa sozinha parece ser uma ferida aberta no meio da sociedade. ‘Como assim ela tem 40 anos e nunca casou? Não tem um filhozinho sequer?’ São essas mesmas pessoas que pregam pelos bons valores familiares, que sonham em viver a vida inteira ao lado de uma outra pessoa, completar bodas de diamantes, sabe o que é isso? Você já foi numa boda de diamantes? Uma festa em que um casal completa 75 anos de casamento? Se tiver ido, por favor, me envie as fotos. Quero ver se Nefertiti está conservada. Mas nessa mesma foto onde o casal de matusaléns ocupa o lugar de destaque do centro, deve ter ao redor, em alguma ramificação dessa família, aquela bisneta adolescente de cabelo cor de cenoura e piercing no nariz achando tudo um porre.

Toda família tem sua ovelha negra ou cor de rosa. Mas o que fica para contar são as histórias edificantes, as que deram certo. Os errados e errantes vão sendo colocados de lado. Citados uma vez ou outra nas conversas de família como exóticos, divertidos (o que já é um elogio) ou doidos. Já reparou como as pessoas usam as palavras ‘doido’ ou ‘louco’ para definir aquela pessoa que não pensa igual a elas? 'Fulano é doido demais' 'Ciclano não bate bem da cabeça'.
As pessoas que carregam uma autonomia, um poder de decisão sobre a própria vida parece ser uma afronta pr’aquela matrona que se sacrificou a vida inteira para criar os filhos. ‘Ai, Dona Judite é uma mulher tão boa. Criou os cinco filhos com a barriga no tanque’. Em compensação, uma mulher solteira que resolve torrar seu cartão de créditos sem limites na Fifith Avenue é taxada de vagabunda.

Quer realmente ofender uma mulher? Chame-a de solteirona, de encalhada. Pior ainda, diga que ela é mal amada ou mal comida, o que, nesse caso, dá no mesmo. Ofender uma pessoa chamando-a de mal comida é de um provincianismo que me assusta. Existem tantas características que podem definir a personalidade de uma pessoa e você vai resumir toda a psique dela pela qualidade/quantidade de sexo que ela tem feito? Então isso quer dizer que não existem celibatários bem humorados. Aqueles hare krishnas sorridentes que eu vejo freqüentemente na Paulista de vestes coloridas e convidando as pessoas para participarem de celebrações são alucinações da minha mente? Ai, eu sou uma pessoa muito doida mesmo. E não preciso ir muito longe, não. Tenho amigos que ficam bem durante um bom tempo sem sexo. Existem outras formas de orgasmo que não o sexual. Ângela Rô Rô chegou a dizer que hoje em dia sente mais prazer comendo um chuchu cozido no vapor do que transando. Eu mesmo tenho uma tática: sempre que você for sair à caça, faça o seu doce preferido e guarde na geladeira. Se no final da noite, tudo tiver sido um desastre, quando você chegar em casa e abrir a geladeira, vai ver aquela travessa de curau sorrindo pra você, então devore-a inteira. Você vai ver que nem precisava ter saído.


Abro o post com essa longa introdução porque é sobre isso que a música de hoje fala: sobre as vantagens da solteirice, sobre o mundo que se descortina à sua frente se você estiver disposto a enxergá-lo. Se é verdade o que nos disse Zélia Duncan quando cantou ‘Solidão, quem pode evitar? Te encontro enfim’, façamos dessa Senhora Dona Solidão nossa amiga e andemos de mãos dadas com ela. Como nessa música que foi gravada pela primeira vez em 2002 pelo Capital Inicial e regravada em 2004 pela Nila Branco, que é a versão que gosto mais.

Nila que ficou conhecida no cenário nacional em 2002 por causa de sua música Diversão que entrou na trilha sonora da novela Desejos de Mulher, é uma das cantoras mais interessantes do pop contemporâneo nacional. Com sua voz grave e limpa, essa mineira nascida em Unaí, vem desbravando um espaço importante no Centro-Oeste brasileiro (com sua tradição sertaneja tão arraigada) para o pop/rock nacional. Se você ainda não parou para prestar atenção nessa cantora, sugiro que dê uma ouvida na ótima Seus Olhos. É o que basta para se viciar. Como não querer ouvir mais e mais de uma cantora que canta coisas tão poéticas quanto: Você já me viu séria/Já me viu de porre/Me viu fazendo drama por tua desordem/Mas triste eu nunca quis que você me visse.


Mas voltando ao tema de hoje, a música que quero tentar ‘decifrar’ se chama Pra Ninguém e começa da seguinte maneira: Ninguém pra ligar e dizer onde estou/Ninguém pra ir comigo onde eu vou/Por outro lado, ninguém pra abaixar o volume/Ninguém pra reclamar dos pratos sujos/Ninguém pra fingir que eu não amo.

Como diria Caetano em Dom de Iludir, cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. E é isso que a letra de Pra Ninguém tenta nos mostrar. Não a dor e a delícia de ser. Mas a dor e a delícia de estar. Estar sozinho é uma condição e não uma definição. Repare que, hoje em dia, quando você precisa preencher uma ficha cadastral para qualquer coisa, não se pergunta mais seu estado civil. Saber se a pessoa é solteira, casada, divorciada (pros mais antiquados, desquitada) ou viúva é algo tão out quanto um biquíni asa-delta.


Ok. Não vou bater nessa tecla da solidão bem resolvida até o final do texto. Não estaria sendo condizente com a letra da canção, pois seu autor sente sim a falta de alguém pra ligar e dizer onde está, a falta de alguém pra ir com ele ao cinema ou jantar. Afinal de contas, você se sente bem mais confortável quando entra num restaurante acompanhado. Já reparou como é embaraçoso entrar num restaurante sozinho? E quando, logo em seguida, entra aquele seu casal de amigos que estão ali para comemorar o aniversário de namoro? Você tem vontade de se esconder debaixo da mesa. Mas é mais elegante fingir que está esperando alguém antes de pagar a conta e sair de fininho.


Por outro lado, quando se está sozinho, você pode sim, acordar às dez da manhã no domingo e ligar o som na maior altura porque não tem ninguém pra acordar. E qual o problema de se acordar cedo no domingo? Você não saiu, preferiu ficar em casa lendo aquele livro que estava ali empilhado há um tempão esperando para ser lido. E você descobriu que é um thriller maravilhoso e que tem continuação. Ficou acordado até as duas, devorando o livro e o brigadeiro de colher que você fez. Acordou mil calorias mais gordo, olhou pra cozinha e viu a pilha de louça que está se acumulando desde a semana passada. O que você vai fazer? Lavar essa louça imediatamente? Óbvio que não. Vai correr no parque pra queimar essas calorias. Amanhã tem diarista.


Mas você já terminou sua corrida no parque e o domingo parece tão entediante. E você pega o jornal e começa a ler a sessão de comportamento e descobre que as maiores taxas de suicídio acontecem no domingo à noite. Calma, não é pra tanto! Você tenta continuar a leitura daquele livro que parecia tão viciante de madrugada, mas agora você presta atenção é no tamanho da sua cama e como sobra espaço nela! E sua mãe te liga pra almoçar e você enfrenta aquela maratona de perguntas sobre sua vida íntima e pessoal. E no fim da tarde quando volta pra casa, vê um casal de idosos andando sob o crepúsculo. Não parece um casal acomodado, é um casal vivo, é nítido que ainda conservam interesse um no outro, uma vontade de compartilhar novidades ou coisas tão banais quanto o preço do filé mignon que está pela hora da morte.


E quando finalmente entra em casa, percebe que ainda não são nem seis da tarde. Meu Deus! Como o domingo se arrasta! Zapeia por alguns canais, mas não acha nada de interessante! Pensa em pedir ajuda pro seu velho amigo rivotril e dormir até a segunda de manhã, mas eis que seu melhor amigo te liga. E estão todos lá naquele barzinho novo que abriu na Frei Caneca tomando um chope geladíssimo!


E amanhã é segunda e tem trabalho e tem trânsito e tem os quarenta minutos diários que você passa na esteira. E tem a noite vazia. Que pode ser preenchida pelo que você quiser. Então toda noite no mesmo lugar, abra os olhos e deixe o dia entrar pra ninguém.


Ps.: Este blog irá sortear o livro 50 Anos a Mil, a biografia do Lobão. Para concorrer é muito fácil. Basta estar entre os seguidores. O sorteio será no dia 15/04.



Pra Ninguém

Composição : Alvin L.

Ninguém pra ligar e dizer onde estou
Ninguém pra ir comigo onde eu vou
Por outro lado, ninguém pra abaixar o volume
Ninguém pra reclamar dos pratos sujos
Ninguém pra fingir que eu não amo

Toda noite no mesmo lugar
Eu abro os olhos
E deixo o dia entrar
Pra ninguém

Ninguém pra dizer quando eu devo parar
Ninguém na casa pra poder acordar do meu lado
Ninguém pra contar novidades
Ninguém pra fechar as cortinas
Ninguém pra brigar de vez em quando

Toda noite no mesmo lugar
Eu abro os olhos
E deixo o dia entrar
Pra ninguém



segunda-feira, 21 de março de 2011

Vai com os anjos. Vai em paz.




É tão estranho, os bons morrem jovens. Assim parece ser quando me lembro de você que acabou indo embora cedo demais.

Todo dia é o mesmo dia. A vida é tão tacanha, nada novo sob o sol. Tem que se esconder no escuro quem na luz se banha por debaixo do lençol.

Você deve estar se perguntando por que abro o post de hoje com músicas tão díspares: a soturna Love in the Afternoon da Legião Urbana e a alegre e solar Luz de Tieta de Caetano Veloso. Talvez porque essas duas canções tenham mais a ver uma com a outra do que possa supor nossa vã filosofia. Já explico.

Uma vez por ano venho para Ervália para visitar minha família. Acredito que a maioria das pessoas que aqui me lêem nunca ouviu falar nesse nome, Ervália. Mas isso é indiferente. Pense em qualquer cidadezinha do interior do Brasil. Uma cidadezinha com 17 mil habitantes, sem o charme das cidades históricas ou daquela cidade do interior cantada por Caetano em Não Identificado. Poderia ser Santana do Agreste, a cidade fictícia criada por Jorge Amado, onde acontece a saga de Tieta. Ou poderia ser qualquer cidade do Brasil, até mesmo algumas capitais. Conheço algumas que prezam pelos mesmos ‘valores’ tão propalados por aqui. Quando disse pr’uma amiga que estava vindo pra cá e contei como as coisas aqui funcionavam, ela disse:’ Não precisa ir muito longe. São Bernardo é a mesma coisa’. Um outro amigo que é de Belo Horizonte também reiterou essa teoria. É assim também em Aracaju, cidade que passei uma temporada. Não quero aqui criar um mal estar em relação à essas cidades. E se você, leitor, é de alguma delas, não se ofenda. Só estou traçando um plano comum que cabe a todos esses lugares: uma forte presença de religiosidade, a defesa pelo moral e bons costumes da família, uma total falta de opção do que se fazer principalmente nos dias de domingo (por aqui, as pessoas sentam no banco da praça e falam da vida alheia), uma melancolia que é varrida para debaixo do tapete, ou melhor, para dentro das gavetas entupidas de tarjas pretas.

Voltando para casa no domingo à noite – tinha ido visitar uma amiga dos tempos da adolescência, hoje casada e com uma filha prestes a completar quatro anos e depois fui dar uma volta pela cidade com uma prima à procura de um lugar para sentar e tomar uma cerveja. Não encontramos nada. Fomos então para a praça, esperando um banco vagar para conversar um pouco. Vã ilusão a nossa achar que iríamos encontrar um banco vago no dia e horário mais concorrido da semana, depois da missa das oito – estava meio melancólico olhando as cores da cidade em que nada lembravam as cores de Almodóvar ou de Frida Khalo cantada por Calcanhoto em Esquadros. Era tudo meio amarronzado. Com o perdão da palavra, tudo meio em tom de bosta. E aquela melancolia externa se fez presente dentro de mim, quando entro em casa e recebo uma ligação da minha irmã: João morreu. Se matou.

João tinha 29 anos no máximo, acredito eu. Era de Leão e fã de Madonna. Durante um ano foi uma das pessoas mais importantes da minha vida. O ano em que dividimos um quarto na República Escândalo em Ouro Preto. O ano em que dividimos conflitos. Dois garotos desorientados, começando a viver, a experienciar coisas que só se vive quando passa por uma faculdade de Artes Cênicas numa cidade como Ouro Preto. Descobertas sexuais, pessoais, profissionais. ‘Não era bem isso que eu queria’. ou ‘Não sei pra onde estou indo, só sei que não estou perdido.’ O primeiro porre. Revelações à meia luz. Surpresas. Descontroles. Amizades leais. Algumas pra vida inteira. Outras se perderam pelo caminho.

Foi assim com João. Ele trancou matrícula e nunca mais nos vimos. O leonino que fazia as posições mais difíceis de ioga com as janelas abertas para demonstrar a flexibilidade do corpo, não teve jogo de cintura para segurar a pressão da família que queria que o filho tivesse uma profissão séria. Foi fazer engenharia.

João era gay. Já desconfiava disso. Mas fiquei sabendo com todas as letras depois por amigos pra quem ele, secretamente, havia confessado esse seu ‘deslize’. João foi embora cedo demais porque teve que se esconder no escuro por se banhar na luz por debaixo do lençol.

Faço coro com Cazuza: Meus heróis morreram de overdose e meus inimigos estão no poder. E cedo demais se foram Cássia Eller, Elis Regina, Tim Maia, Renato Russo, Caio Fernando Abreu. E muitos outros marginais. Espero que você não se assuste aqui com o uso dessa palavra. Dependendo de como você a interpreta, marginal é um elogio. Marginal é só quem vive à margem da sociedade. E quem quer estar dentro desse esquema? Como diria o próprio Caio F., não sei se em Dama da Noite: nesse esquema, é sujo dar certo.

Um dos meus escritores favoritos, Salinger, escreveu uma bela novela sobre o suicídio que já cheguei a comentar aqui. Chama-se Seymor, uma apresentação. Não faço apologia ao suicídio. Tampouco condeno os que se matam. Não sei o que se passa na cabeça de um suicida. Não sinto a dor dele. O problema é quando a pessoa se mata porque já está sendo assassinada, dia-a-dia, aos poucos. Porque as pessoas com as quais convive (muitas vezes a própria família) fazem questão de ignorar traços tão especiais de sua existência. E mais uma vez citando a letra de Luz de Tieta: Todo mundo que saber com quem você se deita. Nada pode prosperar.

Peço desculpas à você que vem acompanhando o blog, pois hoje não tentei decifrar nenhuma música. Ao invés disso, quero apenas postar o vídeo e a letra de Trem das Sete do Raulzito, esse canceriano sem lar, um dos caras mais lúcidos que já passou por esse planeta. E dizer que prefiro acreditar nesse Deus cantado por ele que vem deslizando no céu entre brumas de mil megatons do que nesse Deus punitivo que o cristianismo vem nos pregando há milênios. E dizer que, como na canção, eu também acredito que o mal vem de braços e abraços com o bem num romance astral.

E para fechar com leveza (sim, eu ainda busco por ela) deixo vocês com uma fábula GLS so sweet:

Era uma vez um grupo de amigos gays que estavam viajando juntos pela Europa. Certo dia, eles decidem alugar uma van para conhecer algumas cidadezinhas do interior da Itália. Enquanto passam por aquelas estradinhas sinuosas pedem para o motorista aumentar o som e assim vão brincando, falando besteiras e cantando na maior altura Kylie, Katy Perry, Lady Gaga, Madonna, Pet Shop Boys e Elton John (já que são democráticos e tem uma maricona véia na viagem). No meio da viagem, a van perde o controle e se desgoverna. As bichas entram em pânico. Babado, confusão, gritaria, tiroteio e tapa na cara! João, justo o João, o mais novo da turma, ainda enrustido, que economizou centavo por centavo para fazer essa viagem e disse pra família que estava viajando com os amigos da faculdade, começa a rezar. E quando vê que a van vai despencar ribanceira abaixo, diz: ‘Meu Deus, se eu não morrer, eu juro que eu nunca mais vou ser gay!’

Só que não teve jeito. A van despencou e João morreu. Quando está lá no céu, quietinho, taciturno, cabisbaixo, sentado numa nuvenzinha cinzenta, começa a escutar um bate estaca. Olha pro lado e vê todos os seus amigos numa nuvem vizinha. A nuvem fúcsia é um bafo! Olha pra todos os seus amigos, bichas fervidíssimas. E todas elas gritam em coro: Não é pecado! Não é pecado! Não é pecado!

O Trem das Sete
Composição: Raul Seixas

Ói, ói o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis, olha o trem
Ói, ói o trem, vem trazendo de longe as cinzas do velho éon
Ói, já é vem, fumegando, apitando, chamando os que sabem do trem
Ói, é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem
Quem vai chorar, quem vai sorrir ?
Quem vai ficar, quem vai partir ?
Pois o trem está chegando, tá chegando na estação
É o trem das sete horas, é o último do sertão, do sertão
Ói, olhe o céu, já não é o mesmo céu que você conheceu, não é mais
Vê, ói que céu, é um céu carregado e rajado, suspenso no ar
Vê, é o sinal, é o sinal das trombetas, dos anjos e dos guardiões
Ói, lá vem Deus, deslizando no céu entre brumas de mil megatons
Ói, olhe o mal, vem de braços e abraços com o bem num romance astral
Amém

quarta-feira, 16 de março de 2011

O bom encontro é de dois




“O nosso amor a gente inventa pra se distrair. E quando acaba a gente pensa que ele nunca existiu”. Sábias são as palavras do poeta do rock, nosso controverso Cazuza. Atire a primeira pedra quem aqui nunca inventou um amor. Se a vida é sonho e os sonhos, sonhos são, como diria Calderon de La Barca, não é só o amor que a gente inventa não, e sim toda uma gama de sentimentos que pode passar desde o mais frio desprezo a mais intensa das paixões. E por que inventamos tanto esses amores e desamores e dissabores? Porque inventar faz parte do estar vivo. Nunca deixamos de brincar. As brincadeiras só mudam de nome quando nos tornamos adultos. Inventar é essencial. A vida é muito banal. Acordar todos os dias e fazer tudo sempre igual é monótono e entediante. E se Garcia Marquez está certo, a vida não é a que a gente vive e sim a que a gente lembra e como lembra para contá-la. Desse modo, um simples encontro casual acaba se tornando um encontro de almas, um adeus esperado se torna um desmoronamento de emoções com direito a arranca rabos e o carro do outro inteirinho riscado.

Nesse constante inventar, há os que são mais polidos. E há os que não têm limites para a intensidade. Se você faz parte do primeiro time, arrisque-se um pouquinho mais. Cicatrizes são necessárias e dão um tempero (amargo ou doce) à vida. Se faz parte do segundo, cuidado para não inventar demais e acabar enfiando os pés pelas mãos. Explicando melhor, tem gente que inventa tanto que, às vezes, nem ela acredita na própria invenção. Nessa constante luta contra o desamparo de ser só, forçamos tanto a barra que acabamos por nos unir a alguém que não tem absolutamente nada a ver com a gente. Aquela velha história do ‘não sou feliz, mas tenho marido’. Aqui, eu falo de afinidade. Porque só com afinidade se pode ter intimidade. Pelo menos assim deveria ser. Ou como diziam os antigos: ‘Case-se com quem você goste de conversar’. Porque no fim das contas, é só o que fica.

E é sobre isso que a música de hoje fala. Sobre aquele bom encontro de dois. Nesses tempos de intimidade forçada e relações tão superficiais onde conversar com alguém durante dez minutos antes de ir para cama é quase um ato em extinção, a música de hoje é um bálsamo, um oásis nesse deserto de almas desequilibradas. Gravada em 1988 pelo rei do pop brasileiro, nosso luxuosíssimo Lulu Santos, no álbum que tem o mesmo nome da música, Toda Forma de Amor.

Lulu compôs a letra da música em homenagem à sua parceira de vida, Scarlett Moon e é da relação dos dois que ela fala. Em diversas entrevistas, Lulu faz questão de enaltecer essa relação, como nesse trecho concedido para a Istoé Gente: Não moro na mesma casa da Scarlet, mas a minha relação é com ela. É melhor que casamento. A gente optou por ser higienicamente separado de teto, mas a minha referência afetiva é ela. Fiz a opção para ter mais espaço, para despromiscuizar a relação. Para ficar mais higiênico para mim e para ela. Pessoal e psiquicamente, de toda forma. Para cada um garantir sua individualidade.

Voltando à música, acho que sua letra começa de uma maneira bem forte, quase como um protesto: Eu não pedi pra nascer/Eu não nasci pra perder. E seu autor segue dizendo que não está para brincadeira, que não vai sobrar de vítima das circunstâncias. Está na ativa, desperto, esperto, plugado na vida. Machucado, mas curando a ferida. E termina essa estrofe dizendo que, às vezes, se sente uma mola encolhida. Em algumas versões, Lulu também canta ‘bala perdida’. Seja qual for a expressão que você goste de usar, as duas têm uma similaridade. Tanto uma mola encolhida quanto uma bala perdida não exercem a função que originalmente deveriam exercer. A mola de propulsionar alguma coisa, tirá-la do fundo do poço, talvez. A bala, se é perdida, não atinge seu objetivo. Já que toda bala realizada, creio eu, queria ser o objeto de um tiro certeiro. E assim acuado como uma mola encolhida ou confuso como uma bala perdida, Lulu parte para a próxima estrofe onde as coisas começam a acontecer. É justamente a estrofe em que começa a falar do seu oposto complementar, da outra parte podre da maçã:

Você é bem como eu/Conhece o que é ser assim/ Só que dessa história ninguém sabe o fim

Aqui Lulu fala do que disse no começo do texto, da tão falada afinidade, de sintonia, de se reconhecer no outro. Podemos até ser feitos de matérias diferentes, mas quando começamos a nos relacionar com alguém é preciso uma natural identificação e, principalmente, admiração. Aqui não cabem raspas e restos, tampouco migalhas. É preciso enxergar o outro de frente, sem lupas ou binóculos. Admirar é isso. Como diz Pitty em Equalize: Eu acho que eu gosto mesmo de você/Bem do jeito que você é. Admiração, creio eu, é o melhor elogio que se pode dar a qualquer pessoa.

Continuando na canção nos deparamos com os versos seguintes:
Você não leva pra casa/E só traz o que quer/Eu sou seu homem/Você é minha mulher/E a gente vive junto/E a gente se dá bem/Não desejamos mal a QUASE ninguém/E a gente vai à luta e conhece a dor/Consideramos justa TODA forma de amor.

Acho que esse trecho fala de uma relação muito bem resolvida, onde existe liberdade de escolhas e autonomia (Você não leva pra casa/E só traz o que quer). Uma relação talvez permeada pela posse e pelo ciúme (meu homem/minha mulher) e honesta ao ponto de dizer que ‘não desejamos mal a quase ninguém’. Quem está incluído nesse ‘quase ninguém’, sabe-se lá. Talvez uma pessoa do passado, algum abutre que insiste em colocar olho grande numa relação bonita, vá saber. Uma relação de altos e baixos, de persistência, de luta, de dor. E por fim, um casal sexualmente bem resolvido, que considera justa TODA forma de amor.

Se você me acompanhou até aqui, peço a gentileza de ler algumas definições do Houaiss para a palavra afinidade:

1 tendência a combinar-se
2 coincidência ou semelhança de gostos, interesses, sentimentos etc.
3 ponto ou série de pontos comuns entre duas coisas da mesma espécie
4 atração, simpatia, originadas na identidade de interesses

Se você está conhecendo alguém agora e não identificou nenhuma das características citadas acima nesse início de relacionamento, melhor pular fora dessa canoa furada remando contra a maré.

Mas se identificou todas ou quase todas das definições, siga em frente porque como diria a bruxa Elizabeth Gilbert:

"Todo casal do mundo tem o potencial de se tornar, com o tempo, um pequeno país isolado com dois habitantes, criando uma cultura própria, uma linguagem própria, um código moral próprio do qual ninguém mais pode participar".

Dedico esse post à Mayne Benedetto e Denis Fiorentin, um dos casais mais afinados que conheço.

Toda Forma de Amor

Composição: Lulu Santos

Eu não pedi pra nascer
Eu não nasci pra perder
Nem vou sobrar de vítima
Das circunstâncias
Eu tô plugado na vida
Eu tô curando a ferida
Às vezes eu me sinto
Uma mola encolhida

Você é bem como eu
Conhece o que é ser assim
Só que dessa história
Ninguém sabe o fim
Você não leva pra casa
E só traz o que quer
Eu sou teu homem
Você é minha mulher

E a gente vive junto
E a gente se dá bem
Não desejamos mal a quase ninguém
E a gente vai à luta
E conhece a dor
Consideramos justa toda forma de amor

domingo, 13 de março de 2011

Sorrateira Alegria


Precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica tarde demais.

Abro o post de hoje com o trecho de Precisa-se da Clarice Lispector porque também eu quero dividir essa minha alegria fugidia, mas que estranha e teimosamente, tem insistido em ficar alguns dias comigo. Tenho percebido uma certa nostalgia geral nas pessoas que me cercam. Também pudera. É paulada atrás de paulada. Já não se encontram os sonhos nem nos lugares antes destinados a vendê-los. Porque os sonhos, essa matéria prima das ilusões, têm ficado cada vez mais escassos. Mas parafraseando, Elisa Lucinda, se a coisa está degringolando, só de sacanagem mais otimista eu vou ficar. Quero ser insistente, quero ver até onde vai o meu limite.

Não se trata de alienação. De tampar o sol com a peneira e fingir que os problemas não existem. Justo pelo contrário. Quero encará-los de frente e dar a devida proporção a eles. Sentir a dor. Encher o peito de angústia. Ficar com ela tempo suficiente para que ela enjoe de minha alma e vá procurar por outra mais desafortunada. É isso que desejo para todos os meus. Força sempre! Era a frase que Renato Russo escrevia em todos os seus autógrafos. Renato não estava sozinho. Junto com ele, vários outros compositores brasileiros bradaram palavras de superação. Foi assim com Frejat que, para superar a morte do amigo Cazuza, compôs os versos de O poeta está vivo: Baby, compre o jornal/E vem ver o sol/Ele continua a brilhar/Apesar de tanta barbaridade. Raul Seixas também nos instigou a seguir adiante em Tente Outra Vez: Levante sua mão sedenta/E recomece a andar/Não pense que a cabeça agüenta se você parar/Não!Não!Não!Não!Não!Não!/ Há uma voz que canta/Uma voz que dança/Uma voz que gira/Bailando no ar.

Escolhi a música de hoje justamente pelo que a letra tem de forte, de superação e de alegre e preciso urgentemente repartir essa minha alegria com vocês antes que ela se esvaia completamente. Composta pelo Leoni, essa canção ganhou uma reverberação poderosa na voz de uma das maiores artistas brasileiras. E aqui abro outro parágrafo porque tenho que ser condizente com a grandeza dessa estrela.

Ela apareceu para o Brasil em 1992 com o hit O Canto da Cidade. Já tinha um disco lançado anteriormente que também emplacou o hit Swing da Cor. Mas foi com O Canto da Cidade que essa baiana, na época com 27 anos, literalmente abalou as estruturas de um dos maiores museus do mundo fazendo um show no vão livre do MASP. O show reuniu mais de trinta mil espectadores, o que acabou por deixar o trânsito engarrafado nas imediações do local. Após quarenta minutos de show, foi retirada do palco por representantes da secretaria de turismo de São Paulo, que, preocupados com a estrutura do museu, obtiveram uma ordem da polícia militar para retirá-la do local. Após o show, ela que até então não tinha gravadora, foi contratada pela Sony e começou a fazer um sucesso estrondoso atingindo o topo das paradas em todas as rádios brasileiras, quebrando uma massificação que já vinha ocorrendo há algum tempo com a hegemonia das duplas sertanejas. Essa artista chegou para romper. Mas também para agregar valores de sua cultura e exportá-los para o mundo, que, aliás, só ficou sabendo que no Brasil se fazia música pop contemporânea depois de sua chegada. Ao mesmo tempo em que tem um trabalho primoroso de pesquisa em todos os seus discos e espetáculos, trazendo o ritmo do samba reggae, do Olodum, do Ilê Ayê para o seu repertório, também busca concatenações com artistas diversos e tão multifacetados quanto ela. Ela que já cantou com Ray Charles, Paul McCarteney e com o maestro Tom Jobim, sendo chamada de rainha por ele. A rainha da alegria, a rainha da Bahia, a rainha do Brasil. Daniela Mercury.

Voltando à música de hoje, ela se chama Temporada das Flores e é a segunda faixa do álbum MTV ao Vivo – Eletrodoméstico. E começa da seguinte maneira: Que saudade!/Agora me aguardem/Chegaram as tardes de sol a pino/Pelas ruas, flores e amigos/Me encontram vestindo meu melhor sorriso. Gosto da primeira frase da música ter essa palavra – saudade – que é uma palavra que só existe em português e de cara já nos contextualiza com essa situação de reclusão vivida pelo narrador que, logo em seguida, nos dá um indício de que a volta por cima já está sendo arquitetada, afinal de contas, ele está vestindo seu melhor sorriso.

Para o filósofo André Comte-Sponville, a felicidade é algo inalcançável porque ela é independe de nós e está diretamente relacionada a algo externo que é o desejo. E todo desejo nunca se sustém porque ele está ligado à falta. A partir do momento em que ‘realizamos’ esse desejo, já nos sentimos saciados e, portanto, vazios, e assim continuamos nessa busca incessante. Mas para esse mesmo filósofo, existem dois sentimentos que podem ser sentidos em sua plenitude porque esses sim dependem de nós. São eles, o prazer e a alegria. Prazer e alegria existem quando desejamos o que fazemos, o que é, o que não falta. Sponville define isso como felicidade em ato. Para ele, a esperança é um desejo que não depende de nós, enquanto a vontade (que é de onde advém o prazer e a alegria) é um desejo que depende de nós. É o que parece nos dizer o próximo trecho da música: Eu passei um tempo andando no escuro/Procurando não achar as respostas/Eu era a causa e a saída de tudo/Eu cavei como um túnel meu caminho de volta.

E continua com a seguinte estrofe: Eu te trago um milhão de presentes/Que eu achava que já tinha perdido/Mas estavam na mesma gaveta/Que o calor das pessoas e o amor pela vida. Que tais presentes perdidos são esses a que a música se refere? Talvez sejam os presentes que nós mesmos deixamos de nos dar, nos proporcionando tão poucas surpresas no nosso cotidiano. Nenhuma surpresa dentro de uma caixa prateada com um laço de fita de cetim. Deixamos de ser generosos conosco e, conseqüentemente com o outro. Mas nesse processo de ressurgimento, começamos a ver ao invés de somente enxergar, ouvir ao invés de apenas escutar. Nos conhecendo, conhecemos o outro. E então passamos a sentir o calor das pessoas e amor pela vida.

E como diria Mayne Benedetto, viver é ter curiosidade. E quanto mais curioso se fica, mais fome se tem. E nessa fome desmedida, nessa vontade de engolir o mundo, vamos re-descobrindo o prazer de se ter prazer. De se maravilhar. Com o diferente. Com o novo. Com a mente aberta. Despertos. Como diria Caetano e Gil em Divino Maravilhoso regravada por Daniela: É preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte.

E assim seguimos, nesse exercício constante de enganá-la, a dona Morte, essa única certeza inabalável. Mas que o caminho não seja duro demais. Sou do ponto de vista de que tudo é relativo e que o grande problema de hoje será o simples contratempo de amanhã. Prepare o campo e sua alma para as flores. Porque elas enfeitam o caminho, mesmo fora de estação. E seja autêntico, isso é importante para que a gente um dia acredite nos rumores quando ouvir falar no seu nome.

Temporada das Flores

Composição: Leoni

Que saudade! Agora me aguardem
Chegaram as tardes de sol a pino
Pelas ruas, flores e amigos
Me encontram vestindo meu melhor sorriso

Eu passei um tempo andando no escuro
Procurando não achar as respostas
Eu era a causa e a saída de tudo
E eu cavei como um túnel meu caminho de volta

Me espera, amor, que estou chegando
Depois do inverno a vida em cores
Me espera amor, nossa temporada das flores

Eu te trago um milhão de presentes
Que eu achava que já tinha perdido
Mas estavam na mesma gaveta
Que o calor das pessoas e o amor pela vida

Me espera estou chegando com fome
Preparando o campo e a alma pra as flores
E quando ouvir alguém falar no meu nome
Eu te juro que pode acreditar nos rumores

Me espera, amor, que estou chegando,
Depois do inverno a vida em cores,
Me espera amor, nossa temporada das flores.



quarta-feira, 9 de março de 2011

E a vida pode ser feliz...



Você acredita em vida após o amor? Nos pergunta Cher em Believe. Acho que a pergunta correta deveria ser ‘Você acredita em vida após o fim do amor?’ Quando acaba é porque realmente terminou? Algumas vezes sim. Outras vezes... como diria Renato Russo em Os Barcos: Você diz que tudo terminou/Você não quer mais o meu querer/Estamos medindo forças desiguais/Qualquer um pode ver que só terminou pra você. Aqui mesmo neste espaço, já foi discutido a dor do abandono que acontece quando nos metamorfoseamos no ser idealizado. Tanto nos projetamos no outro que quando passamos pelo momento da ruptura, perdemos o chão e ficamos sem carinho e sem coberta, no tapete atrás da porta.

E para dar mais importância a essa dor, vamos prolongando-a, carregando-a vida afora, como uma mala cheia de pedras. Porque a dor nos legitima. Nos faz ter histórias para contar. É bonito dizer ‘sofri por amor’. Como Saninha, esposa de Euclides da Cunha que se apaixonou perdidamente por Dilermando, um rapaz com idade para ser seu filho. O caso tornou-se célebre devido a notoriedade de seus envolvidos, já que Euclides da Cunha até hoje é considerado um dos maiores escritores brasileiros, cuja obra revolucionária Os Sertões inspirou vários outros escritores inclusive o Nobel Mario Vargas Llosa em seu A Guerra do Fim do Mundo. O fato é que Saninha abriu mão de todas as convenções daquele início de século para viver sua grande paixão. E depois de ter o marido assassinado pelo amante, foi trocada por uma mulher com metade de sua idade. Reza a lenda que mesmo depois de ter levado tamanha rasteira da vida, Saninha não se fez de arrependida e bradou: Eu não errei. Eu amei.

Mas se o sofrimento suga tanto nossas forças e nos empurra para esse buraco negro da depressão, por outro lado, ele nos propulsiona para cima. Como se no fundo do poço tivesse uma mola. E é disso que a nossa música de hoje fala. De recomeços. Da tão falada volta por cima. Afinal de contas, se tudo na vida tem um fim, por que o sofrimento também não teria? Várias são as canções que tratam do tema. Desde as mais clássicas como Começar de Novo do Ivan Lins (Começar de novo e contar comigo/Vai valer a pena ter amanhecido) e Vou deitar e rolar de Baden Powell e Paulo César Pinheiro eternizada na voz da Pimentinha (E agora, cadê teu novo amor?/Cadê, que ele nunca funcionou?/Cadê, que ele nada resolveu?/Quaquaraquaquá, quem riu?/Quaquaraquaquá, fui eu) às mais modernas como Pára de Chorar da Daniela Mercury (Pare com isso/Tudo isso passa, até a dor/Passa depressa/Como passa até um grande amor/Não adormeça/Tanta festa espera por você/Venha e não esqueça/Que tudo recomeça/É só querer) e Doce Sal da Dani Carlos (Porque acabou-se/O que era doce virou sal/E o mundo continua indo e vindo; é natural).

Mas a música que pretendo ‘decifrar’ hoje é de um cara que fez parte do rock oitentista como integrante do Inimigos do Rei, aquela banda responsável por sucessos tão meteóricos quanto criativos como Adelaide, minha anã paraguaia e Uma barata chamada Kafka. Já sabe de quem estou falando? Ainda não? O cara em questão é um dos mais inventivos nomes da chamada moderna MPB, um cara que traz um frescor tanto para as melodias quanto para as letras de nossas canções. Estou falando do arrojado virginiano Paulinho Moska. Ou, se preferir, só Moska. Tudo Novo de Novo é o nome da música que de tão original começa com o fim, o fim de uma relação: Vamos começar colocando um ponto final, pelo menos já é um sinal de que tudo na vida tem fim. O fato de a letra começar com esse ponto final é genial porque seu autor já deixa entendido que é a partir dessa ruptura que a história será contada. Nada de olhar para trás. O lance é seguir em frente de uma maneira bem resolvida e assertiva. Se TUDO na vida tem um fim, o peso do fim dessa relação é relativizado, o que deixa TUDO mais leve.

Vamos acordar, hoje tem um sol diferente no céu gargalhando no seu carrossel, gritando nada é tão triste assim. E talvez não seja mesmo. As coisas têm a importância que a gente dá para elas. É claro que cada pessoa é única em seu temperamento e tem o seu modo de lidar com a dor. Há quem caia na vida e tome um porre homérico. Há quem fique uma semana em casa trancado, desidratado de tanto chorar e achando lindo se olhar no espelho com sua cara moribunda de olheiras profundas. Dê o peso que quiser à sua dor, mas saiba que o mundo não vai parar porque você está sofrendo. Para o bem ou para o mal, a Terra continuará girando em seu eixo de 360°. E sim, coisas bonitas podem estar acontecendo, aquele sol diferente no céu, como o sol que apareceu hoje em São Paulo numa quarta-feira de cinzas depois de um carnaval chuvoso. Um sol que talvez você que está sempre tão atento em olhar um único-outro não tenha percebido num céu de anil.

E a vida segue o seu curso. Mesmo todos os dias sendo iguais. Mesmo as rotinas nos trazendo poucas ou nenhuma surpresa. É preciso sabedoria para perceber que tudo pode ser novo de novo. Não sou partidário da opinião de que se cura o fim de um relacionamento começando outro. Acho que temos que dar um tempo para fechar certas feridas. Mesmo que algumas nunca se cicatrizem de verdade. Mas passado esse tempo, nada mal ter alguém com quem ocupar uma parcela de seus pensamentos diários. Afinal de contas, não somos nenhum monge budista no alto de uma montanha buscando a iluminação. Somos ocidentais tresloucados numa busca incessante por um pé quente debaixo do edredom no inverno. Como diria Tom Jobim: Fundamental é mesmo o amor/É impossível ser feliz sozinho. Não sei se é impossível, Tom, mas que é difícil é. Investimos pouco em autoconhecimento e sempre iremos precisar da opinião do outro para nos validar como pessoa. E por esse motivo, vamos nos jogar onde já caímos para, quem sabe, receber uma ligação naquela tarde vazia e ganhar o dia.

Disse no começo do texto, que a dor legitima nossa existência, a biografia que iremos contar para nossos futuros e hipotéticos netos. Acredito que não só a dor, mas todo e qualquer relacionamento. Sempre que saímos de uma relação, carregamos um pedaço daquela pessoa, suas manias, seu modo de se vestir, um prato novo que você aprendeu a fazer. E no fim acabamos nos irritando com aquilo que nos encantávamos no começo. Justamente porque no final, estamos pouco propensos a nos moldar ao jeito do outro e queremos re-conquistar aquela autonomia de agir que foi se perdendo com o tempo. Por isso, o fim também significa o começo. O fim de uma relação pode ser a reconquista da sua autenticidade. É o que diz esse trecho de Tudo Novo de Novo: Vamos celebrar nossa própria maneira de ser/Essa luz que acabou de nascer/Quando aquela de trás se apagou.

E a vida segue, sempre nesse vai e vem que não passa das ondas do amor. Gira, roda. Como um pierrot. É o que nos diz Marina Lima em Pierrot do Brasil. Ou usando uma expressão mais popular: a fila anda. Então vamos terminar inventando uma nova canção. Nem que seja uma outra versão pra tentar entender que acabou. E quando acaba nem sempre é porque é o fim. É preciso mergulhar do alto onde subimos, nos jogar onde já caímos. E se você for duro na queda, a vida pode ser bela e o sol, uma estrada amarela.

Tudo Novo de Novo

Composição: Moska

Vamos começar
Colocando um ponto final
Pelo menos já é um sinal
De que tudo na vida tem fim

Vamos acordar
Hoje tem um sol diferente no céu
Gargalhando no seu carrossel
Gritando nada é tão triste assim

É tudo novo de novo
Vamos nos jogar onde já caímos
Tudo novo de novo
Vamos mergulhar do alto onde subimos

Vamos celebrar
Nossa própria maneira de ser
Essa luz que acabou de nascer
Quando aquela de trás apagou

E vamos terminar
Inventando uma nova canção
Nem que seja uma outra versão
Pra tentar entender que acabou

Mas é tudo novo de novo
Vamos nos jogar onde já caímos
Tudo novo de novo
Vamos mergulhar do alto onde subimos


Dedico esse post à Danielle Rodrigues, que não tem receio de se jogar onde já caiu.


sexta-feira, 4 de março de 2011

Eu vi novela demais




‘Tudo pode ser. Se quiser, será. Sonhos sempre vêm pra quem sonhar.’ Quem foi criança na década de 80, conhece bem o trecho dessa música da Xuxa que junto com o filme Lua de Cristal foi um enorme sucesso na época. Bastava a gente escutar a primeira frase da letra para já começar a cantar, ou melhor, berrar com nossas vozes estridentes. Porque éramos crianças inocentes e, sim, acreditávamos que tudo que nós quiséssemos o cara lá de cima ia nos dar. Mas não foi só a Xuxa que nos bombardeou com mensagens otimistas de que o mundo é um lugar legal para se viver. A família feliz dos comerciais de margarina. Ou os modelos de corpos esculturais andando de jet ski e sorrindo um sorriso que quase nos cega de tão branco nos comerciais de pasta de dente. As novelas com seus finais edificantes em que os bonzinhos encontram sua alma gêmea e os mauzinhos se ferram (com raras exceções, caso de Vale Tudo, por exemplo). E isso não é coisa do passado. Vivemos um momento onde a sociedade tenta nos enfiar cada vez mais goela abaixo o retrato desse mundo perfeito, onde você pode tudo. Um mundo que tem sua imagem traduzida em casais tão perfeitos quanto insossos cuja representação máxima do politicamente correto estampa a capa da Veja.

Mas você que é filho de pais separados ou então assistiu por diversas vezes sua mãe apanhar do seu pai alcoólatra, você que não se lembra quando foi à última vez que foi ao dentista e já está preocupado com essa dor de dente que te acompanha a um bom tempo, que nunca andou de jet ski, que nunca freqüentou a ilha de Caras, que pega o metrô lotado e chega em casa à meia-noite para acordar no outro dia de manhã e repetir a mesma rotina de todos os dias, onde é que você se encaixa nessa alegria toda? Será que você se encaixa? Mas como assim? Você não é feliz? Então você é uma aberração! Por favor, não demonstre seu descontentamento com um mundo tão perfeito! Você não será bem-vinda nesse planeta! Acredite. Afinal, o mundo é feito de gente brava, que levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima.

Não é bem isso que a música de hoje fala e se você já comprou seu abadá e tirou o pé do chão para curtir o cara caramba caraô, acho melhor parar a leitura por aqui porque eu não quero estragar o carnaval de ninguém. Agora, se você é uma pessoa reflexiva e, às vezes (ou quase sempre), se sente um extraterrestre por isso, vem comigo que no caminho eu explico.

Esse sentimento de inadequação é mais comum do que a gente pensa na música brasileira e está presente na letra de várias de nossas canções. Algumas me vêm à cabeça agora: Pais e Filhos (Ela se jogou da janela do quinto andar/Nada é fácil de entender) e Via Láctea (Mas não me diga isso/Hoje a tristeza não é passageira/Hoje fiquei com febre a tarde inteira) da Legião Urbana, Lágrimas e Chuva do Kid Abelha (Será que existe alguém ou algum motivo importante/Que justifique a vida ou pelo menos esse instante?), Trancado da Ana Carolina (Perder é não ter a bússola/É não ter aquilo que era seu/E o que você quer – orientação) e Pierrot do Brasil da Marina Lima (Sim, eu resolvi me ausentar/Para ocultar a minha dor/Fugi, menti/Talvez por pudor).

Mas escolhi especialmente essa música para ‘decifrar’ porque considero seu intérprete um dos caras mais espetaculares do nosso pop, um compositor brilhante que, ao lado de Antonio Cícero e sua irmã Marina, expressa de uma maneira incisiva e poética nossas angústias modernas, contemporâneas e urbanas. Sim, estou falando do nosso controverso Lobo Mau, o senhor João Luiz Woerdenbag Filho, também conhecido como Lobão. E a música de hoje é a terceira faixa do álbum Sob o Sol de Parador de 1989. Já sabe qual é? Não? Mas tenho certeza que você já a cantarolou diversas vezes nas madrugadas da vida: ... A maior expressão da angústia pode ser a depressão/Algo que você pressente/In-de-fi-ní-vel/Mas não tente se matar/Pelo menos essa noite não.

Não é estranho quando você lê a letra ao invés de cantar e percebe o quanto ela é pesada? Pois assim é Essa Noite Não, um soco no estômago, sem firulas, sem meias palavras, direta, seca.

Quando falei acima que Lobão ao lado de Marina e Antonio Cícero era um cara que falava das questões urbanas, posso citar como exemplo, a primeira frase da música: A cidade enlouquece sonhos tortos. Assim como Marina que se utiliza de gírias e expressões do cotidiano das grandes metrópoles (Como pôde queimar o nosso filme? – Acontecimentos), Lobão nos situa num espaço determinado e, no caso de Essa Noite Não, das grandes cidades que enlouquecem, para não dizer destroem, os sonhos tortos de quem ousou sonhar. Quantos não são os sonhos dos que despertam todos os dias em São Paulo? Dos mais ‘simples’ como viver um grande amor aos mais ‘complexos’ como ser promovido na empresa? E quantos sonhos vão sendo abandonados porque, na verdade, nada é o que parece ser? Quantas pessoas que queriam ser outra coisa qualquer que não a que são, e viver outra vida que não a que vivem? E por isso vão enlouquecendo calmamente, pois essa loucura que fala a música, não é a loucura do delírio, do êxtase, do devaneio lírico. É a loucura que vem acompanhada do vazio, da falta de perspectivas, da queda de quem sonhou alto e se espatifou. É a loucura dos insones que, quando conseguem dormir, é á base de calmantes. É a loucura do obsessivo-compulsivo, do neurótico, do histérico, do deprimido. Pessoas que nos cercam todos os dias, mas que no clarão da tarde, preferimos fingir que elas não existem. Fingimos não ter ouvidos para suas lamentações. Quem aqui nunca ouviu alguém dizer: ‘Ai, detesto gente deprimida, gente que nem chegou aos 30 e já desistiu de viver.’? Para os autores dessa frase, tenho um conselho. Procure se conhecer um pouco mais. Não é porque você detesta os deprimidos que não quer ouvir suas lamúrias. Talvez seja porque você tenha receio de se identificar com todos aqueles tormentos. Então, é mais fácil varrer a sujeira para debaixo do tapete e não se aprofundar muito.

Caio Fernando Abreu, escritor que você que freqüenta esse espaço sabe que eu adoro, escreveu em uma de suas cartas: “Será que, à medida que você vai vivendo, andando, viajando, vai ficando cada vez mais estrangeiro? Deve haver um porto" Sinceramente, Caio, não sei se existe esse porto, esse lugar onde nos sentiríamos sempre aconchegados. Segundo algumas correntes psicanalíticas, o desamparo é uma questão inerente ao ser humano, carregamos esse cachorro que nos rói por dentro desde o momento em que abandonamos o útero materno que, talvez, seja o único lugar em que nos sentimos totalmente protegidos. Digo talvez, porque não tenho nenhuma recordação da minha estadia no útero materno. E conheço algumas pessoas que se pudessem nunca teriam saído de lá.

Mas como diria Fernanda Abreu em Dois, já comentada aqui, seguir é o que marca o beat do meu coração. E acho que é isso que a vida pede da gente todos os dias. Coragem. Estar pronto. Para o quê exatamente nunca se sabe. Mas é preciso ter a mente e o corpo sãos, liberdade de escolhas e de pensamentos. Como diria Moska em A Seta e o Alvo: então me diz qual é a graça de já saber o fim da estrada quando se parte rumo ao nada? Concordo com Clarice Lispector quando nos disse que ‘viver, meus caros e caras, é mais difícil que morrer jovem’, mas talvez também concorde com Luis Fernando Veríssimo quando ele diz que ‘o mundo não é ruim, só é mal freqüentado’. E espero que você que aqui me lê, não tente se matar, pelo menos essa noite não.

Essa Noite Não

Composição: Lobão / Bernardo Vilhena / Ivo Meirelles / Daniele Daumérie

A cidade enlouquece sonhos tortos
Na verdade nada é o que parece ser
As pessoas enlouquecem calmamente
Viciosamente, sem prazer

A maior expressão da angústia
Pode ser a depressão
Algo que você pressente
Indefinível
Mas não tente se matar
Pelo menos essa noite não

As cortinas transparentes não revelam
O que é solitude, o que é solidão
Um desejo violento bate sem querer
Pânico, vertigem, obsessão

A maior expressão da angústia
Pode ser a depressão
Algo que você pressente
Indefinível
Mas não tente se matar
Pelo menos essa noite não

Tá sozinha, tá sem onda, tá com medo
Seus fantasmas, seu enredo, seu destino
Toda noite uma imagem diferente
Consciente, inconsciente, desatino

A maior expressão da angústia
Pode ser a depressão
Algo que você pressente
Indefinível
Mas não tente se matar
Pelo menos essa noite não

Dedico esse post à todos os chicleteiros desse meu Brasil Brasileiro.


quarta-feira, 2 de março de 2011

Que seja leve


A paixão (do verbo latino, patior, que significa sofrer ou suportar uma situação difícil) é uma emoção de ampliação quase patológica. O acometido de paixão perde sua individualidade em função do fascínio que o outro exerce sobre ele. É tipicamente um sentimento doloroso, porque, via de regra, o indivíduo perde a sua identidade e o seu poder de raciocínio.

Essa é a definição da Wikipédia para a paixão. Achou sombria demais? Pois é, eu também. Apesar de concordar com tudo o que está dito ali. Mas hoje, excepcionalmente, quero me desprender um pouco da razão que, a gente bem sabe, não é lá muito chegada na espontaneidade. Aproveitando que essa semana é carnaval, vamos mandar nosso bom senso às favas e viver desenfreadamente, destemperadamente! Enfiar o pé na jaca! Sem amarras, sem receios! Se a ressaca vier, a indústria farmacêutica tá aí pra isso! E se junto com a ressaca, vierem algumas cicatrizes, no problem, ostente-as de cabeça erguida. Marcas de pessoas que vi-ve-ram! Porque, cá entre nós, se você estivesse numa livraria tendo que decidir entre duas biografias para ler nas suas próximas férias, uma do Tony Ramos e outra da Vera Fisher, qual das duas você leria? Nada contra o Tony, acho autêntico e verdadeiro seu eterno amor por Lidiane. Porém, a biografia de Vera, a mais hollywoodiana de nossas atrizes, nossa Fênix platinada, deve ter um enredo mais interessante, cheio de reviravoltas, altos e baixos. Talvez mais altos do que baixos. Porque assim é a vida de uma pessoa passional. Mas, do fundo do meu coração, desejo uma única coisa depois de passado o vendaval: que seja leve. Como leves são as músicas que quero, talvez, apresentar-lhes hoje.

A primeira, tenho quase certeza, que você já ouviu. Gravada pela primeira vez em 1984, foi regravada diversas vezes por artistas como Roupa Nova, Elba Ramalho e Ivete Sangalo, essa última tendo entrado na trilha sonora de Suave Veneno em 1999.

A segunda foi gravada em 2000 e faz parte do álbum de estréia desse cantor, Zum Zum, que conheci quando passava uma temporada numa cidade do litoral do Espírito Santo chamada Carapebus.

Estou falando de Frisson do Tunai e Escândalos de Luz do Affonsinho, dois cantores mineiros. Tunai, que é irmão do cantor João Bosco, nasceu em Ponte Nova, cidade vizinha da minha e começou sua carreira no final da década de 1970, tendo ganhado notoriedade em 1984 com a gravação de Frisson no disco Em Cartaz. Affonsinho, cantor ainda pouco conhecido do grande público, mas muito conhecido do público mineiro, é um talentosíssimo compositor e intérprete da nova geração da MPB.

Resolvi quebrar o protocolo e falar de duas músicas ao invés de uma, porque acho que essas duas canções são muito parecidas no seu jeito de nos falar desse amor leve, descompromissado, sem rotinas. Ou seja, o amor em seu estágio inicial, mais conhecido como paixão. Aquela fase em que a gente fala ‘eu te amo’ sem planos, sem compromisso de ser feliz porque já se está sendo feliz.

“Todos os que já tiveram um amor sem nojo nem medo, e de alguma forma insana esperam a volta dele: que os telefones toquem, que as cartas finalmente cheguem.” Nos diz Caio F. em sua crônica Zero Grau de Libra. É aquele momento bobo em que depois de uma conversa banal, voltamos para casa suspirando, com o rosto inteiro rindo, cantando La Vie en Rose. Ou como nos diria Cazuza em Eu Preciso Dizer que Te Amo: lembrando em cada riso teu qualquer bandeira/fechando e abrindo a geladeira a noite inteira.

É a fase onde tudo é intenso, vermelho. Onde se criam todas as expectativas. Um lugar onde, sem percebermos, tomados pela pulsão de vida que esse sentimento nos dá, estamos, na verdade tão perto da morte, já que vamos morrendo, aos poucos, por tudo. Morremos de saudade, de ansiedade, de tesão, de insegurança, de vontade de ser correspondido e de medo de não ser. Mas mesmo assim flutuamos, deliciosamente alienados. Não queremos ser avisados dos perigos que nos rodeiam.

Segundo o filósofo André Comte-Sponville, estar apaixonado é um estado; amar é um ato. Ora, um ato depende de nós, pelo menos em parte, podemos querê-lo, nos empenhar nele, prolongá-lo, mantê-lo, assumi-lo. Mas e um estado? Prometer continuar apaixonado é se contradizer nos termos. Seria como prometer que teremos sempre febre, seremos sempre loucos.

Mas o que fazer então? Se você bem se lembra, comecei esse post, mandando a prudência às favas e assim quero terminá-lo com as palavras da minha guru Elizabeth Gilbert:

“As sensações mais extasiantes que já tive na vida surgiram quando me consumia na obsessão romântica. Esse tipo de amor nos deixa super-heroicos, míticos, mais do que humanos, imortais. Irradiamos vida; não precisamos dormir; o ser amado enche nosso pulmão de oxigênio. Por mais que, no final, essas experiências sejam dolorosas, detestaria ver alguém passar a vida inteira sem saber como é metamorfosear-se euforicamente no ser de outra pessoa.

E espero que vocês se deleitem com essas duas canções leves, românticas e poéticas. Que os corações que já batem pouco, acelerem. Que a brisa do mar nos carregue prum lugar bom e nos conte que a vida é boa.

Frisson

Composição: Tunai/Sérgio Natureza

Meu coração pulou
Você chegou, me deixou assim
Com os pés fora do chão
Pensei, que bom, parece enfim acordei
Pra renovar meu ser
Faltava mesmo chegar você
Assim sem me avisar
Pra acelerar um coração que já bate pouco
De tanto procurar por outro
Anda cansado
Mas quando você está do lado
Fica louco de satisfação
Solidão nunca mais

Você caiu do céu
Um anjo lindo que apareceu
Com olhos de cristal
Me enfeitiçou
Eu nunca vi nada igual
De repente, você surgiu na minha frente
Luz cintilante
Estrela em forma de gente
Invasora do planeta amor
Você me conquistou

Me olha, me toca, me faz sentir
Que é hora, agora, da gente ir


Escândalos de Luz

Composição: Affonsinho

Vou pedir pro céu ficar azul demais
Pro cheiro da flor do manacá te perfumar
Eu vou te levar pra ver o amor passar por toda cidade
Em cada lugar tão longe que parece nem ser de verdade

Vou pedir pro sol ficar até mais tarde
E a brisa do mar nos carregar pra algum lugar bom
Eu vou te contar que a vida é boa [muito boa]
Se você não vai o tempo vai e voa [como ele voa]

Vou fazer barulho até você notar
Anjos e escândalos de luz vão te acordar
Ninguém vai te dar o que você não é
A felicidade nesse mundo é pra quem quer

Dedico este post a Danilo Adomaitis que está prestes a deixar a segurança do seu mundo por amor.