segunda-feira, 4 de abril de 2011

Só pra se viver




Você lembra da primeira vez em que escutou aquela música? Como era linda! E depois que escutou pela primeira vez, teve vontade de escutar pela segunda e pela terceira vez. E comprou o disco e reuniu todos os amigos e ficou feliz porque todo mundo também gostou da música e agora ela tocava nas festinhas e como era bom ver a galera curtindo um som que você descobriu. Mas ontem, você estava sozinha em casa e essa música tocou no rádio e te trouxe várias sensações boas. Quinze anos depois (como o tempo passa!!!) você lembrou do dia em que a colocou pra tocar no toca-fitas (!!!!) do carro e saiu pra night (sim, era assim que se chamava balada naqueles velhos tempos idos) e junto com todos os seus amigos berrou até estourar as cordas vocais. Mesmo que não soubesse a letra inteira, você berrava. O importante era estar inserido naquilo. Todo aquele êxtase, toda aquela efervescência ontem à noite veio de uma forma mais introspectiva e, ao invés de você aumentar o som, você escutou a música baixinho e o que sentiu não foi uma louca vontade de dançar, algo bem diferente disso, algo chamado melancolia.

Certa vez escutei uma frase que dizia o seguinte: 'Depressão é a melancolia sem o charme.' É uma maneira poética de falar de um assunto espinhoso, mas gosto dessa frase. Acredito que as pessoas reflexivas tenham maior tendência à melancolia. Ser melancólico não é necessariamente ser infeliz. Lidar bem com sua melancolia faz com que você conviva bem com a realidade que te cerca. Você não vê mais todos os dias seus colegas de faculdade, não vai a mais nenhum churrasco de república no fim de semana, porém isso fez parte da sua vida um dia e fez com que você se tornasse o que é hoje. As coisas são efêmeras. Tudo passa muito rápido. E o que ontem te maravilhou hoje perdeu o ineditismo que te encantou. Foi assim com aquela música. Foi assim com seu doce preferido de infância. Não era bem melhor comer mirabel do que waffle? Foi assim com o sexo. Você nunca mais vai sentir aquela sensação de ter sido tocado pela primeira vez. O que não quer dizer que as coisas não podem continuar sendo boas. E que outras coisas inéditas virão para nos maravilhar. Há tanta coisa ainda para ser vista, tantos lugares para serem descobertos, tantos sabores para serem apreciados, tantos livros para serem lidos. Tantos amores para serem vividos. Mas aí você me pergunta: e quando acabar esse ineditismo do amor? E quando a outra pessoa não tiver mais nenhum mistério para ser descoberto? Existe um tempo determinado para viver o encantamento do amor? Segundo os cientistas os hormônios são culpados pela duração de apenas dois anos de uma paixão amorosa. Uma equipe de cientistas da universidade de Pisa (Itália) estudou o comportamento dos hormônios em uma relação amorosa e comprovou que o desejo desaparece após dois anos de relacionamento, por causa das mudanças biológicas ocorridas nos corpos dos parceiros.

Mas o que fazer se até a comunidade científica parece querer botar freios nas paixões desmedidas? Poderia dizer para você desafiar a ciência e agir como uma besta-fera irracional e intempestiva e viver a sua vida como se não houvesse amanhã. Mas talvez haja uma solução mais prudente e não menos saborosa. É o que parece nos dizer a música de hoje.

Gravada pela primeira vez em 1991 no álbum Tudo é Permitido, é um dos grandes sucessos de uma banda de incontáveis sucessos. Na minha humilde opinião, a mais bem sucedida banda pop brasileira. Goste ou não goste dessa banda, tenho certeza que você sabe cantar pelo menos uma música de cada disco dela. Vamos lá fazer um teste? Vou começar com uma frase de cada música e você completa.

Do disco Espião de 1984: Diz pra eu ficar muda...

Do disco Educação Sentimental de 1985: Lágrimas e chuva molham o vidro da janela, mas ninguém me vê...

Do disco Ao Vivo de 1986: Seu rosto na TV parece um milagre...

Do disco Tomate de 1987, que nem fez tanto sucesso assim: As entradas do meu rosto e os meus cabelos brancos...

Do disco Iê Iê Iê de 1993: Eu tive um sonho, vou te contar....

E poderia citar várias outras canções que foram sucessos, mas vou parar por aqui. Se você continuou cantando em pelo menos duas das letras acima, sabe bem do que eu estou falando. Kid Abelha é presença ilustre na curta história da música pop brasileira. E, diga-se de passagem, a única banda da década de 80 que tem uma vocalista feminina que ainda perdura. Paula Toller além de ser linda e talentosa, é uma mulher inteligente e ousada. Um dia ainda pretendo falar só das letras compostas por Paula que falam sobre sexo. Paula tem um olhar totalmente transgressor sobre esse assunto e escreve letras que colocam a mulher em pé de igualdade com o homem quando o assunto é liberdade sexual. Só para citar alguns exemplos, deixo vocês com dois trechos pra lá de abusados compostos pela nossa diva. O primeiro faz parte de Poligamia e o segundo de Derretendo Satélites:

‘Meus amores me querem inteira/Em qualquer posição/Meus amores não marcam bobeira/E eu não fico na mão/.../Todo homem merece um harém/Toda mulher também’

‘Onde a sua mão está agora?/A minha você sabe bem/Quanto mais tempo demora, mais violento vem, meu bem.’

Mas voltando à música de hoje, o que ela discute são as alternativas para se prolongar o encanto de uma relação. Desafiar a ciência e transformar os tais dois anos em quatro, seis, quem sabe a vida inteira. Como? Leia os versos abaixo de Grand’ Hotel:

‘Se a gente não tivesse feito tanta coisa/Se não tivesse dito tanta coisa/Se não tivesse inventado tanto/Podia ter vivido um amor Grand' Hotel/Se a gente não dissesse tudo tão depressa/Se não fizesse tudo tão depressa/Se não tivesse exagerado a dose/Podia ter vivido um grande amor’

O que Paula nos diz é para não ir com tanta sede ao pote. Parece que hoje as pessoas já começam uma relação com data determinada para acabar justamente porque vivemos numa época onde tudo é permitido. Se nos tempos dos nossos avós o namorinho era de portão e dos nossos pais era de sofá, hoje é de colchão. Não estou aqui pregando pelo conservadorismo dos amores passados (Deus que me livre!), acho muito bom essa liberdade de conhecer uma pessoa inteiramente antes de poder optar definitivamente por ela. Mas como tudo na vida, essas relações modernas também são uma faca de dois gumes. Com um mês de namoro, você já tem sua alma desvendada. O outro já conhece sua letra, suas manias, seus vícios, suas dores, sua posse.

‘Devagar com o andor que o santo é de barro’, nos diz um velho dito popular que parece carregar lá sua sabedoria. Menos, bem menos. Não entregue todos os detalhes de uma vez. Aliás, aí parece estar a chave desse segredo. Nos detalhes. Procure prestar a máxima atenção neles. Não ache que tudo é uma bobagem. Não revele qual é o seu perfume. Acorde um pouco mais cedo que a outra pessoa, vá até o banheiro e faça um gargarejo com flúor. Leve café na cama. Saia para jantar num restaurante diferente uma vez por mês (no mínimo!!!). Não use aquela cueca velha. Não faça NUNCA cocô de porta aberta. Nem com um mês nem com vinte anos de casado. Fique em silêncio. Não conte os minutos, se você os conta é sinal de que o tempo não está passando depressa como deve ser quando se está ao lado de quem se ama. E como diria outra música do Kid Abelha: ‘Desde que estamos aqui eu não quero mais saber quanto tempo se passou, quem sou eu e onde estou’. Só assim você poderá, quiçá, viver um amor Grand’ Hotel, que segundo a própria Paula se trata do Grand’ Hotel de Bains de Veneza, aquele do romance Morte em Veneza do Thomas Mann depois transformado em filme por Lucino Visconti. No livro, um senhor de meia idade, ao passar as férias em Veneza se encanta por um adolescente e vive dias de intenso desejo reprimido por um garoto que em tudo representa o que ele já não mais é e nem possui.

Acho que o título é só uma homenagem à obra literária, pois a letra da música não chega a esse grau de platonismo. Será que não? Bem, pelo menos na letra, o casal já viveu uma paixão que foi atropelada por um caminhão, ‘sem teus carinhos e tua atenção’. Porque, por mais doloroso que possa ser, isso acontece com mais freqüência do que a gente queria. Quando acaba a paixão, acaba também qualquer consideração que você tinha pelo outro porque a paixão diferente do amor é um sentimento egoísta que só serve enquanto satisfaz nossa persona hedonista. Como a própria Paula já cantou: ‘quem ama, ama o amor e não outra pessoa’ e que eu já disse aqui mesmo nesse espaço que acho que essa frase se adequa mais à paixão do que ao amor.

Seguindo na música, Paula termina com algumas indagações:

‘Qual o segredo da felicidade?/Será preciso ficar só pra se viver? Qual o sentido da realidade?Será preciso ficar só pra se viver?’

Acho que todas essas perguntas não têm respostas. Mas por que, desde os primórdios, as pessoas não se cansam de perguntá-las? Por que, eu, numa madrugada de segunda-feira, sozinho num apartamento perdido na cidade, estou escrevendo estas palavras? Por que você está me lendo? Por que buscamos essas respostas? Qual o segredo da felicidade? Da sua, da minha? Ela existe? Onde ela está? Vem sozinha ou acompanhada? Está num sorvete de pistache que você toma ao lado de alguém numa tarde praieira? Ou no topo daquela montanha em que você medita sozinho? Existe um caminho? Ou pelo menos um atalho que a gente saiba que vai ser menos espinhoso? Qual o sentido da realidade? Será que alguma coisa nisso tudo faz sentido? Será que a vida é mesmo sempre um risco? Você tem medo do perigo? E, finalmente, por que mesmo tendo todas essas perguntas a serem respondidas, a gente quer encontrar alguém pra viver um amor Grand’ Hotel?

Talvez porque seja mais fácil dividir as dúvidas. Talvez porque seja mais prazeroso dividir as alegrias. Somos seres gregários e isso nem o passar dos milênios irá mudar. Ficar só pra se viver. Só pra se viver. Será? Mesmo que se transforme em ‘bom dia’, ainda assim quero viver um grande amor. Sem exagerar a dose. E assim, quero adiar o inevitável atropelamento. Mas quem sabe, me desvio do caminhão e sou pego de raspão por uma bicicleta. E neste momento, terei alguém pra dizer: ‘Oh, baby, não chore. Foi apenas um corte’.


Grand' Hotel


Composição : George Israel / Paula Toller / Lui Farias

Se a gente não tivesse feito tanta coisa,
Se não tivesse dito tanta coisa,
Se não tivesse inventado tanto
Podia ter vivido um amor Grand' Hotel.

Se a gente não dissesse tudo tão depressa,
Se não fizesse tudo tão depressa,
Se não tivesse exagerado a dose,
Podia ter vivido um grande amor.

Um dia um caminhão atropelou a paixão
Sem teus carinhos e tua atenção
O nosso amor se transformou em "Bom Dia"...

Qual o segredo da felicidade?
Será preciso ficar só pra se viver?
Qual o sentido da realidade?
Será preciso ficar só pra se viver?



2 comentários:

  1. "A sua falta é tamanha
    Silêncio da voz do coração
    As dúvidas que tenho sobre a vida
    Tirei na última canção...."

    Ricardo, adorei o post dessa semana!!! Esses versos que coloquei são de uma música da Roberta Campos, que tal decifrar alguma música dela um dia destes?!
    bju e parabéns pelo blog

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  2. Anália, são lindos esses versos. Vou prestar mais atenção na Roberta. Obrigado pela sugestão!

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