segunda-feira, 25 de abril de 2011

Pequenos Cárceres Cotidianos



O orgulho é um cárcere. Não confunda o que digo com amor-próprio, segurança, autoconfiança, reconhecimento de uma qualidade em si ou no outro. Falo daquilo que não nos deixa pedir perdão, que parece nos humilhar e nos impede de corrigir um erro, reconhecê-lo e voltar atrás numa equivocada decisão. Dói admitir. Parece uma ferida aberta na vaidade da gente. E ainda tem gente que acha chique ter orgulho de ter orgulho e ainda enche a boca de orgulho pra dizer: “Sou um cara muito orgulhoso!” Ele não deveria falar assim, a não ser que dissesse: “Sou orgulhoso, mas estou em tratamento”.

Abro o post de hoje com o trecho de Orgulho Ferido da Elisa Lucinda porque é desse sentimento que quero falar hoje. Sentimento que permeia várias de nossas canções, a começar pelo clássico sertanejo ‘Evidências’ eternizado nas vozes da dupla Chitãozinho e Xororó: ‘E nessa loucura de dizer que não te quero/Vou negando as aparências/Disfarçando as evidências/Mas pra quê viver fingindo se eu não posso enganar meu coração?’

Acho que o orgulho nas relações afetivas aparece por causa das incompatibilidades de gênios. Muitas vezes nos envolvemos com alguém que realmente é o nosso oposto. Aquela velha história ‘dos opostos se atraem’. Isso tem o seu fundo de verdade. Pelas minhas experiências pessoais, posso dizer que os opostos se atraem fisicamente, por uma coisa meio instintiva, meio animalesca, acabamos nos envolvendo com pessoas que possuem em demasia aquilo que nos falta e vice-versa. E sem perceber, estamos totalmente ensandecidos, vivendo desvairadamente, correndo riscos por uma pessoa que nos deixa loucos. Na cama e na vida. Essa explosão sexual parece compensar tudo. Como diria um amigo, o negócio é forte. Babado, confusão, gritaria, tiroteio e tapa na cara! Mas quando tudo isso acaba, um mar de desilusão se alastra. E tal qual na música Elevador de Ana Carolina, você diz: ‘Eu queria tanto mudar sua vida, mas você não sabe se vai ou se fica.’ No que a outra pessoa pode te responder com a letra de Na minha mão da Marina: ‘Pois saiba que dói mais em mim, saber você tão tola assim.’ Porque é mesmo muita tolice querer mudar a vida de outra pessoa, querer que ela se encaixe no seu way of life. O que se espera é afinidade, intimidade, cumplicidade. Mas uma cópia fiel, nem se você tiver um irmão gêmeo.

Ainda bem que existe o outro lado da moeda. Ao invés de orgulho, o arrependimento por ter sido tão insensato. Como na letra desse forró arretado cantado por Fagner e Amelinha, Espumas ao Vento, há quem diga: ‘Sei que errei, estou aqui pra te pedir perdão/Cabeça doida, coração na mão, desejo pegando fogo.’ O negócio é saber quem vai dar o braço a torcer primeiro, como naquele velho hábito adolescente de ficar com o telefone na mão, esperando o tempo todo que o outro ligue. Um longe do outro, morrendo de tédio e de ciúme, já disse Marina em Acontecimentos. É sobre isso e mais um pouco que a música de hoje parece falar. De orgulho, de projeções, de decepções. E quem é que já não passou por tudo isso?

Gravada em 2009 no disco Chiaroscuro por uma cantora da novíssima geração de roqueiras brasileiras. Uma baiana que como seus conterrâneos Raul Seixas e Marcelo Nova nadou contra a maré da música ‘supostamente’ dominante na Bahia. Estou falando de Pitty e a música a ser decifrada é Me Adora que começa com o seguinte verso:

‘Tantas decepções eu já vivi/Aquela foi de longe a mais cruel/Um silêncio profundo e declarei/Só não desonre o meu nome’

A primeira frase da música já vem com uma palavra matadora: decepções. Decepções vividas pela sua autora. Vocês já pararam pra pensar em como a decepção, muitas vezes, é um sentimento egoísta? Sim, porque existem dois tipos de decepções: aquela causada por uma atitude ignóbil de uma pessoa que você admira e aquela causada pela queda das projeções que você jogou na outra pessoa. Aquela pessoa pode muito bem só estar sendo aquilo que ela foi a vida inteira, mas que você, com suas pequenas poções de ilusão, nunca fez questão de ver claramente. E por isso, quando você enxerga o outro de forma mais racional e tem noção de que ele sempre foi aquilo que você fez questão de não ver, o tombo é mais alto, mais cruel. E por isso o silêncio profundo e contemplativo que declara ‘não desonre o meu nome’. Porque talvez o seu nome, seja uma das únicas coisas que lhe reste. Junto com o seu sobrenome, Orgulho.

Continuando na letra, Pitty nos brinda com o verso:

‘Você que nem me ouve até o fim/E injustamente julga por prazer/Cuidado quando for falar de mim/E não desonre o meu nome’.

Tenho cada vez mais certeza de que isso é um hábito muito comum nas relações contemporâneas. E não acho que seja só nas relações afetivas de casal não. Entre amigos ou colegas de trabalho também. É cada vez mais difícil ouvir alguém até o fim. Quantas vezes numa discussão você não se pegou dizendo ‘péra, que eu não terminei de falar’. O outro já está louco berrando para sobrepor a voz dele sobre a sua. Como se fosse uma questão de quem grita mais alto. E a discussão inteligente nesses momentos acalorados se esvaem pelo ralo. Como na letra de Meninos e Meninas da Legião Urbana, às vezes, tenho vontade de dizer: ‘Quero me encontrar, mas não sei onde estou/Venha comigo procurar algum lugar mais calmo/Longe dessa confusão e dessa gente que não se respeita/Tenho quase certeza que eu não sou daqui’. Nesse ponto, concordo com Peninha quando ele diz em Levando a Vida: ‘Quem fala pouco, saca tudo/Saber ouvir é mais saber.’ Pouquíssima gente tem coisas interessantes a dizer, principalmente aqui nesse espaço tão democrático chamado internet. E mesmo assim elas têm milhões de seguidores. Por isso um dos meus escritores favoritos continua sendo J. D. Salinger que depois de ter escrito quatro livros aclamados por crítica e público, se tornou um homem recluso, por achar que já tinha dito o suficiente. Mas estou eu aqui devaneando, então vamos voltar à letra da música e a outro hábito mais do que comum nas pessoas: julgar por prazer. Quem aqui nunca disse uma asneira a respeito de uma situação ou pessoa que atire a primeira pedra. Somos humanos, ávidos por novidades, ávidos por qualquer coisa que nos tire da monotonia dos dias. Julgamos por prazer, sim. Mas tal qual Rita Lee, eu me cansei de escutar opiniões de como ter um mundo melhor. E muitas vezes de onde menos se espera, é daí que não vem nada mesmo. Ou então, onde há fumaça, muitas vezes só existe uma ingênua torta de morango.

E continuando na letra, seguem os versos:

Será que eu já posso enlouquecer ou devo apenas sorrir?/Não sei mais o que eu devo fazer pra você admitir/Que você me adora/Que me acha foda/Não espere eu ir embora pra perceber.

Talvez seja um lugar-comum das relações, quando você olha ao redor e vê o vendaval que passou. E você percebe que lhe restam essas duas opções tão díspares entre si. Enlouquecer e deixar o caos ao redor dominar sua alma. Ou sorrir. Não se levar à sério demais. Por mais clichê que seja essa frase, ela tem o seu sentido: tudo passa. E não é nada legal se deixar escravizar pelo orgulho. Diga sim ao outro que você o adora, que o acha foda. Não espere ele ir embora. Aqui quero abrir um parênteses e parabenizar os compositores dessa canção. (Porque por mais que seja comum você dizer quinhentas e cinqüenta mil vezes ao dia a palavra foda, não é uma rotina da música brasileira usar expressões como essa em suas canções. E Pitty fez uma multidão repetir esse refrão toda vez que essa música tocava nas rádios. Sabe quantas músicas brasileiras possuem a palavra foda? Uma. E é essa aí. Por mais banal que possa parecer, para mim, isso é pioneirismo. Pitty fez em 2009 o que Tetê Espíndola fez em 1985 quando venceu o Festival dos Festivais da Rede Globo com a canção Escrito nas Estrelas. Pela primeira vez, alguém cantava em alto e bom som a palavra tesão numa canção brasileira. ‘Pois sem você, meu tesão, não sei o que eu vou ser’, bradava Tetê com sua voz inconfundível.)

Parênteses fechados, sigamos na letra:

Perceba que não tem como saber/São só os seus palpites na sua mão/Sou mais do que o seu olho pode ver/Então não desonre o meu nome

Gosto especialmente desse trecho, porque acho que já vivi essa situação algumas vezes. E por diversos momentos fui rotulado porque o outro me julgou frio ou sério demais. Ou porque me julgou afoito e passional demais. Como se existissem regras, manuais ou bulas a serem seguidas nas relações. Muitas vezes tive vontade de dizer isso: São só os seus palpites na sua mão/Sou mais do que o seu olho míope/hipermétrope/com catarata pode ver. E é muito chato ter que ficar se moldando pra caber dentro do palpite da outra pessoa. Por mais que seja difícil essa naturalidade no começo quando os dois pedem vinho branco porque acham que vinho branco é mais adequado e acabam descobrindo meses depois que tanto um quanto outro detestam vinho branco. Aliás, nem de vinho vocês gostam. Situações embaraçosas sempre irão existir, mas em vez de palpitar, verbalize. Pode dar certo.

E por fim:

Não importa se eu não sou o que você quer/Não é minha culpa a sua projeção

Sei que é impossível não projetar no começo de qualquer relação ou mesmo no fim. Mas como canta Marina nesses brilhantes versos compostos pelo Tremendão: Sei que você fez os seus castelos e sonhou ser salva do dragão/Desilusão, meu bem/Quando acordou estava sem ninguém. Pessoalmente acho que quanto menos projeção se joga menos trabalho se tem pra recolhê-la depois. Pensando nisso, me vem à cabeça uma história contada por um rapaz extremamente maduro para os seus 21 anos, que me disse que uma pessoa lhe declarou no segundo encontro que estava apaixonada. Sabe o que foi que ele fez? Literalmente, mandou essa pessoa tomar no cu e lhe disse: Você é idiota? Eu só te mostrei o que eu quis te mostrar.

São os meandros dessa invenção humana chamada paixão que nos oferece o êxtase juvenil, que nos faz esquecer dos perigos, mas que também nos faz sentir vivos, que justifica nossa existência, que complica a nossa vida, que nos faz ter uma briga de foice com a outra pessoa, que enche nossa alma de orgulho ferido, bobo, idiota.
Caso você esteja agora sendo corroido pelo verme do orgulho, deixo-o com essa reflexão do mesmo texto da Elisa Lucinda, citado no começo do post:

‘Ao contrário do que se anuncia, o orgulho é uma forma sofisticada de solidão. E a gente nem percebe sua ocupação.’


Me Adora
Composição : Pitty / Derrick Green / Andreas Kisser

Tantas decepções eu já vivi
Aquela foi de longe a mais cruel
Um silêncio profundo e declarei:
Só não desonre o meu nome!
Você que nem me ouve até o fim
Injustamente julga por prazer
Cuidado quando for falar de mim
E não desonre o meu nome
Será que eu já posso enlouquecer?
Ou devo apenas sorrir?
Não sei mais o que eu tenho que fazer
Pra você admitir
Que você me adora
Que me acha foda
Não espere eu ir embora pra perceber
Que você me adora
Que me acha foda
Não espere eu ir embora pra perceber
Perceba que não tem como saber
São só os seus palpites na sua mão
Sou mais do que o seu olho pode ver
Então não desonre o meu nome
Não importa se eu não sou o que você quer
Não é minha culpa a sua projeção
Aceito a apatia, se vier
Mas não desonre o meu nome
Será que eu já posso enlouquecer?
Ou devo apenas sorrir?
Não sei mais o que eu tenho que fazer
Pra você admitir
Que você me adora
Que me acha foda
Não espere eu ir embora pra perceber
Que você me adora
Que me acha foda
Não espere eu ir embora pra perceber


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