segunda-feira, 27 de junho de 2011

Foi um rio que passou em minha vida


Muito já foi dito nesse blog sobre os amores que deixaram marcas profundas, aquelas cicatrizes que não se esvaem nem com o tempo; sobre amores intensos que machucam a alma, aquele que tal qual Elis Regina canta em Atrás da Porta nos faz agarrar ‘nos teus cabelos, no teu peito, teu pijama, nos teus pés aos pés da cama, sem carinho e sem coberta’. Mas será mesmo que todo término de relação tem que ser assim, sempre uma tragédia, com um mar de lágrimas e, às vezes, até banhado em sangue? Eu, particularmente, acho que não. E outros compositores da nossa música também. Talvez o mestre da leveza (e que alguns chamariam de leviandade) quando o assunto é amor seja mesmo o Cazuza. Já que ele foi o cara que consagrou o exagero do amor inventado. E se inventamos podemos também desinventar, não é certo? Pois como disse Marina Lima em Virgem, se ‘as coisas não precisam de você, quem disse que eu tinha que precisar?’. E se inventamos tudo (há indícios de que até o amor materno é inventado), inventamos também a dor. A vida seria muito banal, se não déssemos a devida profundidade a cada situação. Mas que fique bem claro que em algumas situações (quiçá, na maioria delas) o seu amor é uma mentira que a minha vaidade quer e que se você sair de perto eu vou pensar em suicídio, mas no fundo eu nem ligo. Ou como cantou Maria Rita em Não Vale a Pena ‘é uma pena, mas você não vale a pena, não vale uma fisgada dessa dor, não cabe como rima de um poema de tão pequeno’.

E é sobre isso que a música de hoje fala, sobre um rio que passou em minha vida. Mas, por mais que a correnteza tenha sido arrebatadora, uma febre ou um fogo leve (deve ser da idade!), um rio é sempre um rio, sempre segue o seu fluxo no mesmo sentido. E alguns até secam; deixando apenas a lembrança da fertilidade do que foi um dia. Um rio nunca é um oceano. Uma enchente nunca terá a força de um tsunami. E quando sua água desemboca no mar, e perplexos ficamos com a infinitude das águas salgadas, um rio será só um rio, nada mais que isso.

Essa canção já foi gravada por Roupa Nova, Zizi Possi e mais recentemente pela banda de reggae candanga Maskavo. Foi composta em 1972 por uma dupla que fez história no rock nacional, mais precisamente no rock rural nacional. Como assim rock rural? Isso lá existe? Se você, assim como eu, é um apaixonado por música brasileira, já sabe que estou falando de dois caras que, junto com um terceiro, criou um estilo musical dos mais criativos já vistos nesse país. Criado na década de 70, o rock rural incorporou influências do folk e country anglo-saxônicos ao estilo da toada lusitana, com uma linguagem poética que se refere aos temas do campo, resultando numa musicalidade com ritmo de balada pop. E se você, assim como eu, já teve o seu momento BG (bicho grilo) de pisar os pés na terra, de tomar banho de cachoeira, de usar jeans rasgado, de acender uma fogueira e cantar desafinado numa roda de violão ‘Te amo, espanhola/Se for chorar, te amo’, ‘Pelas ruas onde andas, onde mandas todos nós, somos sempre mensageiros esperando a sua voz’, ‘Eu quero uma casa no campo, do tamanho ideal, pau-a-pique e sapê’, ‘Tudo que move é sagrado e remove das montanhas com todo cuidado, meu amor’, sabe que eu estou falando de Sá, Rodrix e Guarabyra, os três geniais criadores do rock rural que teve adeptos como Flávio Venturini e Beto Guedes. E a música de hoje é do disco Presente Passado Futuro de 1972, se chama Me faça um favor e começa da seguinte maneira:

‘Quero que você me faça um favor/Já que a gente não vai mais se encontrar/Cante uma canção que fale de amor/Que seja bem fácil de se guardar’

Os primeiro versos da canção já denotam o desapego e a leveza da letra. Seu autor constata de uma maneira simples e direta o fim de um vínculo: a gente não vai mais se encontrar. E pede para esse alguém que lhe cante uma canção que fale de amor, mas que seja bem fácil de se guardar. Porque assim é encarado esse término. Sem muitas neuras, mas também sem muito ardor. E por isso a letra fácil de se guardar. Nada a la Andrea Doria, música da Legião Urbana que discorre sobre o fim de um relacionamento cheia de metáforas inclusive no título da música (Andrea Doria é o nome de um navio que naufragou) e sim algo como ‘fácil, extremamente fácil, pra você e eu e todo mundo cantar junto’.

Logo em seguida, vem os versos:

‘Meu amor, o que eu sou, todo mundo vê/Me perdi, me esqueci/Dentro do seu mundo/Procurando a vida com você’

É a afirmação de uma autonomia e de uma individualidade que não existiam na vida a dois, já que depois de declarar que não vai mais encontrar a outra pessoa, o compositor diz ‘o que eu sou, todo mundo vê’. Diferente de quando ainda vivia aquela relação em que se perdeu e se esqueceu, pois estava dentro do mundo do outro – um mundo particular criado pela intimidade dos amantes – procurando a vida. Ou quem sabe procurando pela vida. Já que o simples fato de se procurar algo, deixa mais do que claro que você ainda não encontrou. E procurar a vida significa que você não percebe que ela já está acontecendo todos os dias e que, enquanto se procura por ela sem distração, ela passa todos os dias do seu lado, às vezes lhe sorrindo escancaradamente.

Continuando na canção:

‘Mesmo que as pessoas lembrem de nós/Mesmo que eu me lembre dessa canção/Não vai haver nada pra recordar/Nada que valeu, que houve de bom’

Aqui o autor da canção minimiza a importância da pessoa com quem viveu uma história. Pois, mesmo sendo uma pessoa que tenha feito parte da sua vida, já que dividiram momentos, pessoas, canções comuns, ele reduz a sua influência, negando-lhe o prestígio de ter tido algum poder sobre ele algum dia. O que, de fato, pode ser verdade, considerando que há controvérsias nos versos de Fernando Pessoa quando ele fala que ‘tudo vale a pena...’. Será mesmo? Se olharmos por aquele velho prisma de que aprendemos com o erro, talvez sim. Mas também só por isso. Já que existem pessoas que passam pela nossa vida e que não nos acrescentam nenhum sentimento benéfico como nos sábios versos de Itamar Assumpção cantados magnificamente por Zélia Duncan: ‘Vi, não vivi, não senti onda por ti, não senti nem o menor apetite, não senti o tremelique’.

E por fim, seguem os versos:

‘Meu jardim, seu quintal/Sempre a mesma flor/Hoje não, cada um dentro do seu mundo/Navegando contra a solidão’

É o autor da canção seguindo em frente, lamentando por ter cultivado margaridas no seu jardim só porque de lá também via a mesma flor sendo regada no quintal da outra pessoa. E quando bateu aquela vontade louca de arrancar as margaridas e cultivar rosas vermelhas, esse desejo foi sufocado por ser estranho demais. Mas hoje não! Hoje é cada um dentro do SEU mundo. Vasto, imenso, íntimo, particular mundo. Navegando contra a solidão. Em sua regravação dessa música, Zizi Possi, alterou o último verso para ‘carregando outra solidão’, que a meu ver, ficou mais honesto, já que acho que não devemos navegar contra a solidão. Eu sou/vou contra ao que é nitidamente ruim. E a solidão – quem pode evitar? – não é necessariamente ruim quando fazemos as pazes com ela. Por isso, achei genial a sacada de Zizi em dizer ‘carregando outra solidão’. Porque é só mais uma. Que pode ser diferente da última. Mas sempre será solidão. Que rima com desilusão. Que destoa de emoção. Que não combina com a paixão. Mas que vem acompanhada de conexão. Com você e com o mundo que passa a enxergar com o seu olhar. E não se iluda. Porque, por mais incomum que seja, esse substantivo também se diz no plural. Então até a próxima esquina. Se pelo caminho da direita ou da esquerda, isso eu não sei. Já que pelas ruas que andei, costumo sempre encontrá-las, as solidões.

Ps.: Agora você também pode ler meus textos aqui.


Me faça um favor

Composição: Sá e Guarabira

Quero que você me faça um favor
Já que a gente não vai mais se encontrar
Cante uma canção que fale de amor
Que seja bem fácil de se guardar

Meu amor, o que eu sou, todo mundo vê

Me perdi, me esqueci
Dentro do seu mundo
Procurando a vida com você

Mesmo que as pessoas lembrem de nós

Mesmo que eu me lembre dessa canção
Não vai haver nada pra recordar
Nada que valeu, que houve de bom

Meu jardim, seu quintal
Sempre a mesma flor
Hoje não, cada um dentro do seu mundo
Navegando contra a solidão


segunda-feira, 20 de junho de 2011

Em que altura?


Depois de cinco anos, ela está de volta. Deixou o balneário e veio para as duras poesias concretas das esquinas de São Paulo, cidade que segundo ela própria, faz o seu som vibrar e a faz ver o mar. Marina Lima como o Rio, cidade que deixou para trás (já que como ela mesma se define, é uma mulher de antenas e não de raízes) continua linda. Aos 55 anos está no auge de sua beleza física e de seu vigor artístico. E nada melhor que celebrar esse momento com um álbum intitulado Clímax.

Já disse aqui nesse espaço que Marina é uma das cantoras mais originais da nossa música. E volto a reafirmar isso sem a menor sombra de dúvidas. Uma cantora sui generis que não se compara com nenhuma outra da MPB. Tente buscar traços de outras cantoras em Marina Lima e você não encontrará porque Marina se criou em cima dela mesma, catando um pouquinho de cada influência aqui e acolá, fazendo uma música vira-lata. Entenda aqui vira-lata como um elogio, já que vira-lata é a mistura de várias raças. E assim é o som de Marina, moderno que bebe na fonte do tradicional, intimista que brinca com o popular, eletrônico que dança na malemolência do samba.

O álbum, de uma maneira geral, traz letras e sonoridades urbanas, urbanidade essa que sempre esteve presente nas letras de Marina que ao longo de sua carreira permeou seus discos com canções que nos falam das dores e das delícias dos moradores das grandes cidades em letras como Virgem (O Hotel Marina quando acende não é por nós dois nem lembra o nosso amor), Acontecimentos (Eu espero acontecimentos só que quando anoitece é festa no outro apartamento ... como pôde queimar nosso filme?) e Pierrot do Brasil (Aqui cada cidade é uma ilha, sem laços, traços, sem trilha e o medo a nos rodear).

Clímax abre com Não me venha mais com o amor, parceria de Marina com Adriana Calcanhoto, que como o próprio nome sugere, é uma canção de desencanto e, a meu ver, também de libertação, já que sua autora propõe uma relação baseada fortemente no sexo em detrimento do amor:

‘Só eu sei lhe dar o melhor/ Noites de subir pelas paredes altas/Noites de incendiar o lençol/Noites de ver estrelas sob o teto do quarto/Noites de apurar o sabor/Noites inteiras com manobras de risco no ato/Só não me venha mais com o amor’

Não me venha mais com o amor e Keep Walkin talvez sejam as duas músicas do CD que tenham uma batida mais sexual. Confesso que a sonoridade da segunda me lembrou muito a versão que Marina gravou de Difícil, uma canção do álbum Todas de 1985, pro álbum Lá nos Primórdios de 2006.

A segunda faixa de Clímax, #SP Feelings é uma homenagem à cidade de São Paulo e às pessoas que por aqui habitam e também uma reflexão de Marina sobre essa nova fase de sua carreira e de sua vida:

Essa cidade faz meu som vibrar/E querer viver pra concluir/Tanta perspectiva nova, ímpar/Que só cidades grandes sabem produzir/ ... / Japas, carros, beijos, bienais/Que ainda guardam muito do meu cais

Apesar de ser um álbum muitíssimo autoral (Das onze músicas, dez são compostas por Marina. A única exceção é uma versão do clássico sessentista romântico Call me de Tony Heatch), Marina expande seus horizontes ao fazer parcerias com artistas interessantes como alguns nomes da hora como Karina Buhr em Desencantados, canção que também tem a presença ilustre de Edgar Scandurra no violão, na guitarra e nos vocais.

Em Pra Sempre, Marina divide os vocais com Samuel Rosa numa balada romântica e talvez a mais comercial do álbum, com potencial para virar hit.

Mas de todas as canções, a que mais gostei é a faixa número cinco do álbum em que Marina divide os vocais com Vanessa da Mata, numa música lindíssima chamada A Parte Que Me Cabe e é sobre essa música especificamente que me deterei a falar daqui em diante.

A música começa com uma brincadeira de Marina, em que escutamos sua voz de fundo gritando ‘Vanessa, cê tá no meu disco!’, um reconhecimento de Marina à Vanessa da Mata, reconhecimento esse de uma artista que, como já foi dito acima, está sempre antenada nas gerações de músicos que estão começando e que trazem alguma novidade para o cenário musical. No DVD Acústico MTV, Marina dá um depoimento falando sobre a importância de Daniela Mercury e Carlinhos Brown na sua carreira, de como a música dos dois mexeu com seu modo de fazer música. Enfim, uma bonita homenagem de uma artista já consagrada, que abre alas pros músicos da nova geração entrarem e seguirem com suas variedades de ritmos e sons.

A Parte que me cabe começa com uma programação de bateria potente de Edu Martins para, logo em seguida, entrar num samba que como a própria Marina diz é ‘um samba do meu jeito’. Um samba que não tem as explosões de bateria de uma escola, mas sim algo mais cadenciado ao estilo de Samba da Bênção de Vinícius de Moraes ou Desde que o samba é samba do Caetano.

Então Marina nos pergunta:

‘Em que altura deve se abrir mão das aventuras, dos riscos e da paixão?’

Pergunta que eu refaço a vocês. Existe uma altura da vida que a gente deve abrir mão de sentimentos tão viscerais, de sensações que nos trazem esse frescor, que nos fazem sentir vivos? E no que seria pautado esse toque de recolher? Na idade? Na condição civil? Nas responsabilidades acumuladas pelo correr dos anos? Na falta de brilho dos olhos causada justamente pelo severo olhar do outro que julga e que pune?

A própria Marina responde essa pergunta:

‘Se estamos vivos, temos o direito de sentir.’

E do alto de sua maturidade ironiza os incautos do coração, aqueles que começam a trilhar os caminhos tão incertos do amor:

‘Será bonito ficar de longe e denegrir a juventude e os com fogo no coração’.

Frase que só alguém que amou demais pode proferir, alguém que já teve febre e sabe que a temperatura a qualquer momento abaixa. Que os cortes, por mais profundos que sejam, um dia viram cicatrizes. Que nos acompanham pela vida afora, é certo. Mas que, em dado momento, será esquecido porque o farol da ilha irá girar de novo por outros olhos e armadilhas e nós iremos nos jogar onde já caímos. Mais uma vez e outra e outra e outra. Por isso, envelheceremos bem, olhando os outros sem doçura e com desdém. Daremos risada daquele adolescente que passa o dia inteiro sem comer porque acha que o seu sofrimento é uma ferida onde o sangue não estanca, porque acha que ele é o rapaz mais triste do mundo. Os escolados em matéria de amor sabem que isso é só mais um capítulo numa vida tão afeita aos dias iguais. É a invenção da nossa humanidade, aquilo que criamos para dar mais sabor à nossa (in)existência. Como na canção:

‘Cada um é único no mundo e nisso todo mundo é igual. Uns resolvem tudo num mergulho, outros seguem em busca de um ideal.’

Mas independente da escolha de cada um, se o escuro do quarto ou o neon da pista de dança, uma coisa é sempre certa, a solidão. Que pode ser de uma quietude pacífica ou medonha. E isso só depende do caminho que você vai trilhar. Mas quando enfim, você encontrar a inevitável Solidão que tenha o direito à sua individualidade assegurado como nos versos finais d’A parte que me cabe:

Me deixa quieta com minha solidão. A vida é minha e também meu coração. E se você já encontrou a sua parte, me deixa em paz atrás da parte que me cabe.’

Ps.: Agora você também pode ler meus textos aqui.


A Parte Que Me Cabe

Composição: Marina Lima

Em que altura deve se abrir mão das aventuras, dos riscos e da paixão?

Se estamos vivos, temos o direito de sentir

Será bonito ficar de longe e denegrir a juventude e os com fogo no coração

Quando as doenças e os medos são em vão

Em que medida envelheceremos bem, olhando os outros sem doçura e com desdém?

Cada um é único no mundo

E nisso todo mundo é igual

Uns resolvem tudo num mergulho

Outros seguem em busca de um ideal

Me deixe quieta com a minha solidão

A vida é minha e também meu coração

E se você já encontrou a sua parte

Me deixe em paz atrás da parte que me cabe



segunda-feira, 13 de junho de 2011

Por outros olhos e armadilhas








“Ninguém se separa, Rímini. As pessoas se abandonam. Essa é a verdade, a verdade verdadeira. O AMOR PODE ATÉ SER RECÍPROCO, MAS O FIM DO AMOR, NÃO, NUNCA. Os siameses se separam. Mas não se separam, tampouco: porque sozinhos não conseguem. Um terceiro precisa separá-los: um cirurgião, que corta pelo meio o órgão ou a membrana que os une com um bisturi e derrama sangue e na maioria das vezes, diga-se de passagem, mata, mata um deles, pelo menos, e condena o outro, o sobrevivente, a uma espécie de luto eterno, porque a parte do corpo pela qual estava unido ao outro fica sensibilizada e dói, dói sempre, e se encarrega de lembrá-lo, sempre, de que não está nem nunca vai estar completo, que isso que lhe tiraram nunca mais poderá ter de novo.”

Gosto especialmente desse trecho do livro O Passado do Alan Pauls porque ele consegue traduzir brilhantemente esse sentimento de não-aceitação do término de uma relação. Quando duas pessoas até então cúmplices em seus planos de vida, testemunhas solitárias de seus devaneios românticos, necessitadas da presença do outro para se fazerem válidas, começam a se perderem quando olham para as infinitas possibilidades da estrada. E existe um momento em que o motorista pisa no freio porque acabou de ler a placa ‘Cuidado, pista sinuosa a 50 metros’ e o carona está tão relaxado com os pés no porta-luvas cantando ‘Loving you is easy 'cause you're beautiful’ que nem percebe que o outro tirou o pé do acelerador. E nem percebe que agora o motorista está deslocado. Não sabe se vai para a direita ou para a esquerda. Até que ele pára o carro e abre o mapa no seu colo porque está literalmente perdido. Daí o carona pergunta: ‘Por que mapas? Qual a graça de já saber o fim da estrada quando se parte rumo ao nada? A gente tinha tanta certeza de tudo. Era só eu e você. A gente se bastava. O meu mundo girava em torno de você.’ Mas o fim do amor, como foi bem dito por Alan Pauls, nunca é recíproco.



A afinidade do início, a trilha sonora romântica que diz ‘E no meio de tanta gente eu encontrei você, entre tanta gente chata, sem nenhuma graça, você veio. E eu que pensava que não ia me apaixonar nunca mais na vida’ se transforma num lamento que diz ‘Você diz que tudo terminou, você não quer mais o meu querer. Estamos medindo forças desiguais. Qualquer um pode ver que só terminou pra você’.



- E os planos? Onde é que eles ficam? Você disse que queria morar comigo! Combinamos viajar no próximo feriado, lembra? E a decoração do apartamento? Já tínhamos até decidido a cor do sofá!



- Eu disse pra você ir com calma.



Nessa hora tem sempre alguém que pediu pra você ir com calma, pra não fazer tantos planos. Mas como na música Meu Plano da Daniela Mercury, a resposta pode ser: ‘Engano seu achar que fosse brincadeira. Engano seu. Aconteceu de ser assim dessa maneira e o plano é meu. Mesmo sem motivo, sem sentido, sem saber, andei fazendo planos pra você.’



É dessa falta de sintonia que a música de hoje fala. Enquanto um dança valsa. O outro dança bolero.



Gravada pela primeira vez em 1969 no disco Ben Tocado por um dos cantores mais criativos da nossa música, um cara inovador, um dos inventores do samba-rock, mas que também inclui em sua música elementos da bossa nova, do jazz, do maracatu, do funk e do ska. Um artista genuíno, referência musical no Brasil e no mundo, um ariano de talento incontestável (só para constar, tenho muito orgulho de fazer aniversário no mesmo dia que ele), um artista cheio de swing, um compositor versátil capaz de nos levar às lágrimas em algumas canções e ao alegre êxtase da malemolência em outras. Estou falando de Jorge Duílio Lima Meneses. Um cara nascido lá em Madureira e mais conhecido como Jorge Ben Jor. E a música de hoje já é um clássico da MPB, gravada por Daniela Mercury, Fernanda Abreu, Caetano Veloso, Gal Costa, Paulo Ricardo dentre outros. E começa assim:



‘Ela já não gosta mais de mim/Mas eu gosto dela mesmo assim/Que pena, que pena/Ela já não é mais a minha pequena/Que pena, que pena...’



O começo da música fala justamente do que foi dito no início do post, sobre essa não reciprocidade de sentimentos: ‘ela não gosta mais de mim, mas eu gosto dela mesmo assim’. É aquele momento em que você tem que se acostumar com a vida sem aquela outra pessoa que era parte intensa de sua rotina. E o tédio dos dias vindos depois desse término recente é gritante justamente porque ela estava presente de uma maneira até cronológica. Você sabia que ia chegar em casa à noite e receber aquela ligação. Ou então sente essa ausência fisicamente, quando você acende a luz do quarto e está lá aquela cama insuportavelmente bem arrumada com todos os travesseiros no lugar e você procura por aquele cheiro que ainda deve estar em algum lugar. E você que até então era a pessoa mais importante do mundo para esse outro alguém começa a receber pequenos baques cotidianos, quando ele te chama, pela primeira vez, depois de séculos, pelo seu nome. Nada mais normal do que te chamar pelo seu verdadeiro nome, não é? Seria normal, se você já não estivesse acostumada com aquele apelido carinhoso que só você e ele conheciam. E de repente toca aquela música que você costumava aumentar o volume e cantar em alto e bom som. E você pula logo essa faixa porque o que costumava ser bom agora é só um vazio sem esperança.



‘Pois não é fácil recuperar um grande amor perdido/Ela era uma rosa/As outras eram manjericão/Ela era uma rosa que mandava no meu coração.’



E você jura que nunca mais vai se apaixonar de novo. ‘Como é que eu vou encontrar um cara tão legal de novo? Como é que eu vou achar alguém com quem eu tenha tanta afinidade novamente?’ Esse grande amor perdido que a música fala. E grandes amores não se encontram em cada esquina. Acho mesmo que quem já viveu um grande amor tirou a sorte grande. Quem encontrou seu pavão no meio de tantos urubus, fica mais resistente à novas investidas. É normal ficar um pouco descrente quando se perde alguém que valeu a pena. Mas há que ter uma sabedoria na separação, como numa música que escutei outro dia da Julieta Venegas que diz assim:



'Vamos brindar essa despedida com a certeza de ter vivido algo que nos mudou.'


E é exatamente isso que Jorge Ben parece nos dizer na reta final de sua canção:


‘Mas eu não vou chorar/Eu vou é cantar/Pois a vida continua/E eu não quero ficar sozinho no meio da rua/Esperando que alguém me dê a mão.’



Acho fundamental ter essa sabedoria de agir nesses momentos. Porque isso é um fato, a vida continua mesmo. E o mundo não vai parar porque você sofreu uma desilusão amorosa. Quem dera, o mundo fosse tão romântico a ponto de você virar para o seu chefe e dizer: ‘Não posso trabalhar hoje, estou sofrendo por amor’ ou então ‘Não vou trabalhar hoje. Motivo: estou amando e sendo correspondida. Não quero me aborrecer com detalhes mesquinhos do meu cotidiano’. Nessas horas é melhor pensar como Marina em Virgem: Se as coisas não precisam de você, quem disse que eu tinha que precisar? E não, meu bem, o Hotel Marina quando acende não é por nós dois e nem lembra o nosso amor. Então é melhor fazer a roda da vida rodar mais uma vez e o farol da ilha girar de novo e de novo e de novo por outros olhos e armadilhas. Esse sofrimento todo pode ser muito bonito no cinema ou numa tragédia clássica de Tenessee Williams como na cena final e antológica de Um Bonde Chamado Desejo, em que Blanche é amarrada numa camisa de força e levada pelos enfermeiros e, num lampejo de lucidez, solta: ‘Sempre dependi da bondade de estranhos.’ Mas mesmo dependendo da bondade de estranhos, prefiro manter minha dignidade e tal qual Jorge, eu não vou chorar, eu vou é cantar. E não. Não vou ficar sozinho no meio da rua esperando que alguém me dê a mão.



Que pena



Jorge Ben Jor




Ela já não gosta mais de mim

Mas eu gosto
dela mesmo assim
Que pena, que pena

Ela já não é mais a minha pequena

Que pena, que pena

Pois não é fácil recuperar

Um grande amor perdido

Ela era uma rosa

As outras eram manjericão

Ela era uma rosa

Que mandava no meu coração

Ela já não gosta mais de mim

Mas eu gosto
dela mesmo assim
Que pena, que pena

Ela já não é mais a minha pequena

Que pena, que pena

Mas eu não vou chorar

Eu vou é cantar

Pois a vida continua

E eu não ficar sozinho

No meio da rua, esperando que alguém me dê a mão