segunda-feira, 25 de abril de 2011

Pequenos Cárceres Cotidianos



O orgulho é um cárcere. Não confunda o que digo com amor-próprio, segurança, autoconfiança, reconhecimento de uma qualidade em si ou no outro. Falo daquilo que não nos deixa pedir perdão, que parece nos humilhar e nos impede de corrigir um erro, reconhecê-lo e voltar atrás numa equivocada decisão. Dói admitir. Parece uma ferida aberta na vaidade da gente. E ainda tem gente que acha chique ter orgulho de ter orgulho e ainda enche a boca de orgulho pra dizer: “Sou um cara muito orgulhoso!” Ele não deveria falar assim, a não ser que dissesse: “Sou orgulhoso, mas estou em tratamento”.

Abro o post de hoje com o trecho de Orgulho Ferido da Elisa Lucinda porque é desse sentimento que quero falar hoje. Sentimento que permeia várias de nossas canções, a começar pelo clássico sertanejo ‘Evidências’ eternizado nas vozes da dupla Chitãozinho e Xororó: ‘E nessa loucura de dizer que não te quero/Vou negando as aparências/Disfarçando as evidências/Mas pra quê viver fingindo se eu não posso enganar meu coração?’

Acho que o orgulho nas relações afetivas aparece por causa das incompatibilidades de gênios. Muitas vezes nos envolvemos com alguém que realmente é o nosso oposto. Aquela velha história ‘dos opostos se atraem’. Isso tem o seu fundo de verdade. Pelas minhas experiências pessoais, posso dizer que os opostos se atraem fisicamente, por uma coisa meio instintiva, meio animalesca, acabamos nos envolvendo com pessoas que possuem em demasia aquilo que nos falta e vice-versa. E sem perceber, estamos totalmente ensandecidos, vivendo desvairadamente, correndo riscos por uma pessoa que nos deixa loucos. Na cama e na vida. Essa explosão sexual parece compensar tudo. Como diria um amigo, o negócio é forte. Babado, confusão, gritaria, tiroteio e tapa na cara! Mas quando tudo isso acaba, um mar de desilusão se alastra. E tal qual na música Elevador de Ana Carolina, você diz: ‘Eu queria tanto mudar sua vida, mas você não sabe se vai ou se fica.’ No que a outra pessoa pode te responder com a letra de Na minha mão da Marina: ‘Pois saiba que dói mais em mim, saber você tão tola assim.’ Porque é mesmo muita tolice querer mudar a vida de outra pessoa, querer que ela se encaixe no seu way of life. O que se espera é afinidade, intimidade, cumplicidade. Mas uma cópia fiel, nem se você tiver um irmão gêmeo.

Ainda bem que existe o outro lado da moeda. Ao invés de orgulho, o arrependimento por ter sido tão insensato. Como na letra desse forró arretado cantado por Fagner e Amelinha, Espumas ao Vento, há quem diga: ‘Sei que errei, estou aqui pra te pedir perdão/Cabeça doida, coração na mão, desejo pegando fogo.’ O negócio é saber quem vai dar o braço a torcer primeiro, como naquele velho hábito adolescente de ficar com o telefone na mão, esperando o tempo todo que o outro ligue. Um longe do outro, morrendo de tédio e de ciúme, já disse Marina em Acontecimentos. É sobre isso e mais um pouco que a música de hoje parece falar. De orgulho, de projeções, de decepções. E quem é que já não passou por tudo isso?

Gravada em 2009 no disco Chiaroscuro por uma cantora da novíssima geração de roqueiras brasileiras. Uma baiana que como seus conterrâneos Raul Seixas e Marcelo Nova nadou contra a maré da música ‘supostamente’ dominante na Bahia. Estou falando de Pitty e a música a ser decifrada é Me Adora que começa com o seguinte verso:

‘Tantas decepções eu já vivi/Aquela foi de longe a mais cruel/Um silêncio profundo e declarei/Só não desonre o meu nome’

A primeira frase da música já vem com uma palavra matadora: decepções. Decepções vividas pela sua autora. Vocês já pararam pra pensar em como a decepção, muitas vezes, é um sentimento egoísta? Sim, porque existem dois tipos de decepções: aquela causada por uma atitude ignóbil de uma pessoa que você admira e aquela causada pela queda das projeções que você jogou na outra pessoa. Aquela pessoa pode muito bem só estar sendo aquilo que ela foi a vida inteira, mas que você, com suas pequenas poções de ilusão, nunca fez questão de ver claramente. E por isso, quando você enxerga o outro de forma mais racional e tem noção de que ele sempre foi aquilo que você fez questão de não ver, o tombo é mais alto, mais cruel. E por isso o silêncio profundo e contemplativo que declara ‘não desonre o meu nome’. Porque talvez o seu nome, seja uma das únicas coisas que lhe reste. Junto com o seu sobrenome, Orgulho.

Continuando na letra, Pitty nos brinda com o verso:

‘Você que nem me ouve até o fim/E injustamente julga por prazer/Cuidado quando for falar de mim/E não desonre o meu nome’.

Tenho cada vez mais certeza de que isso é um hábito muito comum nas relações contemporâneas. E não acho que seja só nas relações afetivas de casal não. Entre amigos ou colegas de trabalho também. É cada vez mais difícil ouvir alguém até o fim. Quantas vezes numa discussão você não se pegou dizendo ‘péra, que eu não terminei de falar’. O outro já está louco berrando para sobrepor a voz dele sobre a sua. Como se fosse uma questão de quem grita mais alto. E a discussão inteligente nesses momentos acalorados se esvaem pelo ralo. Como na letra de Meninos e Meninas da Legião Urbana, às vezes, tenho vontade de dizer: ‘Quero me encontrar, mas não sei onde estou/Venha comigo procurar algum lugar mais calmo/Longe dessa confusão e dessa gente que não se respeita/Tenho quase certeza que eu não sou daqui’. Nesse ponto, concordo com Peninha quando ele diz em Levando a Vida: ‘Quem fala pouco, saca tudo/Saber ouvir é mais saber.’ Pouquíssima gente tem coisas interessantes a dizer, principalmente aqui nesse espaço tão democrático chamado internet. E mesmo assim elas têm milhões de seguidores. Por isso um dos meus escritores favoritos continua sendo J. D. Salinger que depois de ter escrito quatro livros aclamados por crítica e público, se tornou um homem recluso, por achar que já tinha dito o suficiente. Mas estou eu aqui devaneando, então vamos voltar à letra da música e a outro hábito mais do que comum nas pessoas: julgar por prazer. Quem aqui nunca disse uma asneira a respeito de uma situação ou pessoa que atire a primeira pedra. Somos humanos, ávidos por novidades, ávidos por qualquer coisa que nos tire da monotonia dos dias. Julgamos por prazer, sim. Mas tal qual Rita Lee, eu me cansei de escutar opiniões de como ter um mundo melhor. E muitas vezes de onde menos se espera, é daí que não vem nada mesmo. Ou então, onde há fumaça, muitas vezes só existe uma ingênua torta de morango.

E continuando na letra, seguem os versos:

Será que eu já posso enlouquecer ou devo apenas sorrir?/Não sei mais o que eu devo fazer pra você admitir/Que você me adora/Que me acha foda/Não espere eu ir embora pra perceber.

Talvez seja um lugar-comum das relações, quando você olha ao redor e vê o vendaval que passou. E você percebe que lhe restam essas duas opções tão díspares entre si. Enlouquecer e deixar o caos ao redor dominar sua alma. Ou sorrir. Não se levar à sério demais. Por mais clichê que seja essa frase, ela tem o seu sentido: tudo passa. E não é nada legal se deixar escravizar pelo orgulho. Diga sim ao outro que você o adora, que o acha foda. Não espere ele ir embora. Aqui quero abrir um parênteses e parabenizar os compositores dessa canção. (Porque por mais que seja comum você dizer quinhentas e cinqüenta mil vezes ao dia a palavra foda, não é uma rotina da música brasileira usar expressões como essa em suas canções. E Pitty fez uma multidão repetir esse refrão toda vez que essa música tocava nas rádios. Sabe quantas músicas brasileiras possuem a palavra foda? Uma. E é essa aí. Por mais banal que possa parecer, para mim, isso é pioneirismo. Pitty fez em 2009 o que Tetê Espíndola fez em 1985 quando venceu o Festival dos Festivais da Rede Globo com a canção Escrito nas Estrelas. Pela primeira vez, alguém cantava em alto e bom som a palavra tesão numa canção brasileira. ‘Pois sem você, meu tesão, não sei o que eu vou ser’, bradava Tetê com sua voz inconfundível.)

Parênteses fechados, sigamos na letra:

Perceba que não tem como saber/São só os seus palpites na sua mão/Sou mais do que o seu olho pode ver/Então não desonre o meu nome

Gosto especialmente desse trecho, porque acho que já vivi essa situação algumas vezes. E por diversos momentos fui rotulado porque o outro me julgou frio ou sério demais. Ou porque me julgou afoito e passional demais. Como se existissem regras, manuais ou bulas a serem seguidas nas relações. Muitas vezes tive vontade de dizer isso: São só os seus palpites na sua mão/Sou mais do que o seu olho míope/hipermétrope/com catarata pode ver. E é muito chato ter que ficar se moldando pra caber dentro do palpite da outra pessoa. Por mais que seja difícil essa naturalidade no começo quando os dois pedem vinho branco porque acham que vinho branco é mais adequado e acabam descobrindo meses depois que tanto um quanto outro detestam vinho branco. Aliás, nem de vinho vocês gostam. Situações embaraçosas sempre irão existir, mas em vez de palpitar, verbalize. Pode dar certo.

E por fim:

Não importa se eu não sou o que você quer/Não é minha culpa a sua projeção

Sei que é impossível não projetar no começo de qualquer relação ou mesmo no fim. Mas como canta Marina nesses brilhantes versos compostos pelo Tremendão: Sei que você fez os seus castelos e sonhou ser salva do dragão/Desilusão, meu bem/Quando acordou estava sem ninguém. Pessoalmente acho que quanto menos projeção se joga menos trabalho se tem pra recolhê-la depois. Pensando nisso, me vem à cabeça uma história contada por um rapaz extremamente maduro para os seus 21 anos, que me disse que uma pessoa lhe declarou no segundo encontro que estava apaixonada. Sabe o que foi que ele fez? Literalmente, mandou essa pessoa tomar no cu e lhe disse: Você é idiota? Eu só te mostrei o que eu quis te mostrar.

São os meandros dessa invenção humana chamada paixão que nos oferece o êxtase juvenil, que nos faz esquecer dos perigos, mas que também nos faz sentir vivos, que justifica nossa existência, que complica a nossa vida, que nos faz ter uma briga de foice com a outra pessoa, que enche nossa alma de orgulho ferido, bobo, idiota.
Caso você esteja agora sendo corroido pelo verme do orgulho, deixo-o com essa reflexão do mesmo texto da Elisa Lucinda, citado no começo do post:

‘Ao contrário do que se anuncia, o orgulho é uma forma sofisticada de solidão. E a gente nem percebe sua ocupação.’


Me Adora
Composição : Pitty / Derrick Green / Andreas Kisser

Tantas decepções eu já vivi
Aquela foi de longe a mais cruel
Um silêncio profundo e declarei:
Só não desonre o meu nome!
Você que nem me ouve até o fim
Injustamente julga por prazer
Cuidado quando for falar de mim
E não desonre o meu nome
Será que eu já posso enlouquecer?
Ou devo apenas sorrir?
Não sei mais o que eu tenho que fazer
Pra você admitir
Que você me adora
Que me acha foda
Não espere eu ir embora pra perceber
Que você me adora
Que me acha foda
Não espere eu ir embora pra perceber
Perceba que não tem como saber
São só os seus palpites na sua mão
Sou mais do que o seu olho pode ver
Então não desonre o meu nome
Não importa se eu não sou o que você quer
Não é minha culpa a sua projeção
Aceito a apatia, se vier
Mas não desonre o meu nome
Será que eu já posso enlouquecer?
Ou devo apenas sorrir?
Não sei mais o que eu tenho que fazer
Pra você admitir
Que você me adora
Que me acha foda
Não espere eu ir embora pra perceber
Que você me adora
Que me acha foda
Não espere eu ir embora pra perceber


terça-feira, 12 de abril de 2011

Alforria


“Se tudo tem que terminar assim, que pelo menos seja até o fim pra gente não ter nunca mais que terminar” canta Herbert Vianna em Caleidoscópio. Sempre pensei no significado dessa frase que me parece descrever uma relação conturbada, mal resolvida, já que pelo narrador esse ‘término’ aconteceu algumas vezes e agora ele quer terminar de vez pra não ter nunca mais que terminar. É incrível como essa situação de indefinição é mais comum do que a gente pensa. E aqui não estou falando de um triângulo amoroso em que uma das pontas é o amante (o tão malfadado vício de uma relação monogâmica). Nessa relação extra-conjugal, a função do amante está definida e ele sabe que ficará sempre em segundo plano. O problema é quando numa relação a dois tudo é somente sexo e amizade, como cantou Bethânia em Tá Combinado. Será que as pessoas conseguem viver essa relação sem neuras, sem terem estabelecido as suas significâncias uns para o outros? Até quando conseguimos suportar essa liberdade toda?

É uma equação complicada que vem tentando ser resolvida já há bastante tempo na MPB, mais precisamente desde 1917 quando Zequinha de Abreu compôs Tico-Tico no Fubá. Essa relação libertária parece encontrar uma representação legítima em três músicas de Daniela Mercury. A primeira é Nobre Vagabundo em que ela respira o amor, aspirando liberdade. A segunda, Aeromoça, tem um dos versos mais lindos da MPB que diz o seguinte: ‘Posso até sentir ciúmes não vou mentir/Posso amá-lo tantas horas quanto resistir/E até mudar a cor do quarto se quiser/Mas eu tenho que voar/Mas eu tenho que voar, amor.’ E por fim em Amor de Ninguém, Daniela rasga o verbo: ‘Meu bem, não chore/O nosso amor não acabou/Só porque alguém olhou pra mim/E me dedicou tudo de bom/Só porque alguém me desejou/E parece que eu correspondi/Só porque alguém me quis feliz/Só porque alguém me conquistou.’

Ainda tentando solucionar essa equação complicadíssima, o segredo das relações fugazes talvez esteja nesse verso de Amor, meu grande amor da Ângela Rô Rô: enquanto me tiver que eu seja o último e o primeiro. Mas a coisa parece degringolar quando você não é essencial nem naquele raro encontro descompromissado de quarta-feira à tarde. E o telefone toca. E qualquer que seja o assunto do telefone, ele vai ser mais importante que você. Nem mesmo mentiras sinceras conseguirão empunhar a espada do amor livre.

Mas então por que essas relações se arrastam? Por que essas pessoas que pregam tanto pela liberdade parecem estar tão presas num relacionamento que se dissolve pelo ralo? ‘Tá amarrado em nome de Jesus!’ ouvi alguém gritar.

Agora sim, acho que estamos chegando lá, à solução dessa equação que parece nem ser tão complicada assim. Tudo se resume a uma palavra: vaidade. Cantada por Cazuza em O Nosso Amor a Gente Inventa quando diz que ‘o seu amor é uma mentira que a minha vaidade quer’. E cantada por Caetano em Eclipse Oculto quando diz: ‘Não me queixo/Eu não soube te amar/Mas não deixo de querer conquistar/Uma coisa qualquer em você/O que será?’

O próprio Caetano parece mudar de lado. Do vaidoso que tem o seu refém carente vira a vítima. Vítima alforriada, diga-se de passagem. Porque não pega bem pruma pessoa que tem um ‘coração galinha de leão que não quer mais amarrar frustração’ fazer a coitada. Então Caetano chuta o balde, canta pra subir, roda a baiana, o caboclo e se liberta definitivamente do algoz que tentou restringir sua visão enquanto estavam juntos. E, agora sim, chegamos na música de hoje. Ufa! Antes um parágrafo.

Para falar sobre o artista Caetano Veloso teria que escrever pelo menos uns cinco posts, já que, na minha humilde opinião, ele é o maior e mais genial artista brasileiro que já passou por esse planeta. Não preciso dizer que acho-o também o melhor compositor brasileiro. Que me desculpem todos os fãs de Chico Buarque, nessa polêmica de qual é maior, mas fico com Caetano porque o acho mais universal, mais moderno, mais transgressor. Pra mim, Caetano sempre será a representação do tempo em que vive. Antenado, arrojado, brilhante.

Voltando à música de hoje, seu nome é Não Enche e ela foi gravada no disco Livro de 1997. Tenho a impressão de que ela é quase um vômito. Um espinho entalado na garganta que sai feito um jorro, quando ele desfia os nomes tão delicados que seguem nessa lista: quadrada, demente, harpia, aranha, perua, piranha, sanguessuga, pirata, malandra, vagaba, vampira, tarada, mesquinha, vadia.

Dessa lista destacaria dois adjetivos que dão o tom de castração que existia nessa relação: sanguessuga e vampira. É Caetano vociferando que não quer mais que lhe arranquem o sangue, que lhe apaguem o brilho.

Continuando na letra, Caetano nos brinda com o seguinte verso: Me encara de frente/É que você nunca quis ver/Não vai querer, nem vai ver/Meu lado, meu jeito/O que eu herdei de minha gente/Eu nunca posso perder.

Nesse trecho ele deixa claro o quanto era invisível para outro, que estava ao seu lado, mas não o enxergava, não aceitava o seu jeito, o que ele herdou de sua gente. Acho essa frase até meio psicanalítica se pararmos pra pensar que as relações afetivas que vivemos são repetições das relações que foram vividas pelos nossos pais. Quantas vezes você não se pegou falando depois de uma briga com o namorado: ‘nossa eu me comportei do mesmo jeito que a minha mãe fazia com o meu pai’. Pois é, terapia existe pra isso. Mas a gente nunca vai perder totalmente o que herdou de nossa gente.

E continuando nos deparamos com o verso: Está no meu querer poder fazer você desabar do salto/Nem tente manter as coisas como estão/Porque não dá, não vai dá.

É o execrado se rebelando, dizendo pra tomar cuidado que uma revolução vem aí, que a única coisa constante da vida é a mudança. E se você acha que eu vou abaixar a cabeça a vida inteira, presta atenção no meu poder porque a presença de um algoz só é justificada quando existe uma vítima, de preferência passiva. Mas não é bem assim. Deixa vir o maremoto que água parada dá dengue.

Me deixa cantar. Me deixa gozar. Me deixa viver. Porque eu vou viver sem você. Na luz desse dia D.

Aqui Caetano escolhe uma data significativa que remete aos desembarques da Normandia pelos aliados na segunda guerra mundial, mas que bem podia ser 13 de maio de 1888 ou 7 de setembro de 1822. Independência do Brasil ou Abolição dos Escravos. Datas que marcaram a libertação de uma nação ou de um povo. O Dia D, deixava claro os rumos daquela guerra, que ela estava chegando ao fim e que, a partir dali, toda uma nova configuração de mundo viria a ser formada.

Esse grito de liberdade de Caetano é expressado de maneira arrebatadora quando ele diz: Eu vou viver dez/Eu vou viver cem/Eu vou vou viver mil/Eu vou viver sem você.

E aqui ele põe um ponto final nessa relação que nunca teve nome porque trancafiou dentro de um quarto escuro a liberdade que julgava ser tão clara.

Pra ficar melhor, só falta agora chegar o dia em que ele irá cantar os versos antológicos de Jamelão:

Eu agora sou feliz/Eu agora vivo em paz/Me abandona, por favor/Porque eu tenho um novo amor e eu não te quero mais.


Não Enche

Composição: Caetano Veloso

Me larga, não enche
Você não entende nada
E eu não vou te fazer entender...

Me encara, de frente
É que você nunca quis ver
Não vai querer, nem vai ver
Meu lado, meu jeito
O que eu herdei de minha gente
Eu nunca posso perder
Me larga, não enche
Me deixa viver, me deixa viver
Me deixa viver, me deixa viver...

Cuidado, oxente!
Está no meu querer
Poder fazer você desabar
Do salto, nem tente
Manter as coisas como estão
Porque não dá, não vai dá...

Quadrada! Demente!
A melodia do meu samba
Põe você no lugar
Me larga, não enche
Me deixa cantar, me deixa cantar
Me deixa cantar, me deixa cantar...

Eu vou
Clarificar
A minha voz
Gritando
Nada, mais de nós!
Mando meu bando anunciar
Vou me livrar de você...

Harpia! Aranha!
Sabedoria de rapina
E de enredar, de enredar
Perua! Piranha!
Minha energia é que
Mantém você suspensa no ar
Prá rua! se manda!
Sai do meu sangue
Sanguessuga
Que só sabe sugar
Pirata! Malandra!
Me deixa gozar, me deixa gozar
Me deixa gozar, me deixa gozar...

Vagaba! Vampira!
O velho esquema desmorona
Desta vez prá valer
Tarada! Mesquinha!
Pensa que é a dona
E eu lhe pergunto
Quem lhe deu tanto axé?
À-toa! Vadia!
Começa uma outra história
Aqui na luz deste dia "D"
Na boa, na minha
Eu vou viver dez
Eu vou viver cem
Eu vou vou viver mil
Eu vou viver sem você...(2x)

Eu vou viver sem você
Na luz desse dia "D"
Eu vou viver sem você...



segunda-feira, 4 de abril de 2011

Só pra se viver




Você lembra da primeira vez em que escutou aquela música? Como era linda! E depois que escutou pela primeira vez, teve vontade de escutar pela segunda e pela terceira vez. E comprou o disco e reuniu todos os amigos e ficou feliz porque todo mundo também gostou da música e agora ela tocava nas festinhas e como era bom ver a galera curtindo um som que você descobriu. Mas ontem, você estava sozinha em casa e essa música tocou no rádio e te trouxe várias sensações boas. Quinze anos depois (como o tempo passa!!!) você lembrou do dia em que a colocou pra tocar no toca-fitas (!!!!) do carro e saiu pra night (sim, era assim que se chamava balada naqueles velhos tempos idos) e junto com todos os seus amigos berrou até estourar as cordas vocais. Mesmo que não soubesse a letra inteira, você berrava. O importante era estar inserido naquilo. Todo aquele êxtase, toda aquela efervescência ontem à noite veio de uma forma mais introspectiva e, ao invés de você aumentar o som, você escutou a música baixinho e o que sentiu não foi uma louca vontade de dançar, algo bem diferente disso, algo chamado melancolia.

Certa vez escutei uma frase que dizia o seguinte: 'Depressão é a melancolia sem o charme.' É uma maneira poética de falar de um assunto espinhoso, mas gosto dessa frase. Acredito que as pessoas reflexivas tenham maior tendência à melancolia. Ser melancólico não é necessariamente ser infeliz. Lidar bem com sua melancolia faz com que você conviva bem com a realidade que te cerca. Você não vê mais todos os dias seus colegas de faculdade, não vai a mais nenhum churrasco de república no fim de semana, porém isso fez parte da sua vida um dia e fez com que você se tornasse o que é hoje. As coisas são efêmeras. Tudo passa muito rápido. E o que ontem te maravilhou hoje perdeu o ineditismo que te encantou. Foi assim com aquela música. Foi assim com seu doce preferido de infância. Não era bem melhor comer mirabel do que waffle? Foi assim com o sexo. Você nunca mais vai sentir aquela sensação de ter sido tocado pela primeira vez. O que não quer dizer que as coisas não podem continuar sendo boas. E que outras coisas inéditas virão para nos maravilhar. Há tanta coisa ainda para ser vista, tantos lugares para serem descobertos, tantos sabores para serem apreciados, tantos livros para serem lidos. Tantos amores para serem vividos. Mas aí você me pergunta: e quando acabar esse ineditismo do amor? E quando a outra pessoa não tiver mais nenhum mistério para ser descoberto? Existe um tempo determinado para viver o encantamento do amor? Segundo os cientistas os hormônios são culpados pela duração de apenas dois anos de uma paixão amorosa. Uma equipe de cientistas da universidade de Pisa (Itália) estudou o comportamento dos hormônios em uma relação amorosa e comprovou que o desejo desaparece após dois anos de relacionamento, por causa das mudanças biológicas ocorridas nos corpos dos parceiros.

Mas o que fazer se até a comunidade científica parece querer botar freios nas paixões desmedidas? Poderia dizer para você desafiar a ciência e agir como uma besta-fera irracional e intempestiva e viver a sua vida como se não houvesse amanhã. Mas talvez haja uma solução mais prudente e não menos saborosa. É o que parece nos dizer a música de hoje.

Gravada pela primeira vez em 1991 no álbum Tudo é Permitido, é um dos grandes sucessos de uma banda de incontáveis sucessos. Na minha humilde opinião, a mais bem sucedida banda pop brasileira. Goste ou não goste dessa banda, tenho certeza que você sabe cantar pelo menos uma música de cada disco dela. Vamos lá fazer um teste? Vou começar com uma frase de cada música e você completa.

Do disco Espião de 1984: Diz pra eu ficar muda...

Do disco Educação Sentimental de 1985: Lágrimas e chuva molham o vidro da janela, mas ninguém me vê...

Do disco Ao Vivo de 1986: Seu rosto na TV parece um milagre...

Do disco Tomate de 1987, que nem fez tanto sucesso assim: As entradas do meu rosto e os meus cabelos brancos...

Do disco Iê Iê Iê de 1993: Eu tive um sonho, vou te contar....

E poderia citar várias outras canções que foram sucessos, mas vou parar por aqui. Se você continuou cantando em pelo menos duas das letras acima, sabe bem do que eu estou falando. Kid Abelha é presença ilustre na curta história da música pop brasileira. E, diga-se de passagem, a única banda da década de 80 que tem uma vocalista feminina que ainda perdura. Paula Toller além de ser linda e talentosa, é uma mulher inteligente e ousada. Um dia ainda pretendo falar só das letras compostas por Paula que falam sobre sexo. Paula tem um olhar totalmente transgressor sobre esse assunto e escreve letras que colocam a mulher em pé de igualdade com o homem quando o assunto é liberdade sexual. Só para citar alguns exemplos, deixo vocês com dois trechos pra lá de abusados compostos pela nossa diva. O primeiro faz parte de Poligamia e o segundo de Derretendo Satélites:

‘Meus amores me querem inteira/Em qualquer posição/Meus amores não marcam bobeira/E eu não fico na mão/.../Todo homem merece um harém/Toda mulher também’

‘Onde a sua mão está agora?/A minha você sabe bem/Quanto mais tempo demora, mais violento vem, meu bem.’

Mas voltando à música de hoje, o que ela discute são as alternativas para se prolongar o encanto de uma relação. Desafiar a ciência e transformar os tais dois anos em quatro, seis, quem sabe a vida inteira. Como? Leia os versos abaixo de Grand’ Hotel:

‘Se a gente não tivesse feito tanta coisa/Se não tivesse dito tanta coisa/Se não tivesse inventado tanto/Podia ter vivido um amor Grand' Hotel/Se a gente não dissesse tudo tão depressa/Se não fizesse tudo tão depressa/Se não tivesse exagerado a dose/Podia ter vivido um grande amor’

O que Paula nos diz é para não ir com tanta sede ao pote. Parece que hoje as pessoas já começam uma relação com data determinada para acabar justamente porque vivemos numa época onde tudo é permitido. Se nos tempos dos nossos avós o namorinho era de portão e dos nossos pais era de sofá, hoje é de colchão. Não estou aqui pregando pelo conservadorismo dos amores passados (Deus que me livre!), acho muito bom essa liberdade de conhecer uma pessoa inteiramente antes de poder optar definitivamente por ela. Mas como tudo na vida, essas relações modernas também são uma faca de dois gumes. Com um mês de namoro, você já tem sua alma desvendada. O outro já conhece sua letra, suas manias, seus vícios, suas dores, sua posse.

‘Devagar com o andor que o santo é de barro’, nos diz um velho dito popular que parece carregar lá sua sabedoria. Menos, bem menos. Não entregue todos os detalhes de uma vez. Aliás, aí parece estar a chave desse segredo. Nos detalhes. Procure prestar a máxima atenção neles. Não ache que tudo é uma bobagem. Não revele qual é o seu perfume. Acorde um pouco mais cedo que a outra pessoa, vá até o banheiro e faça um gargarejo com flúor. Leve café na cama. Saia para jantar num restaurante diferente uma vez por mês (no mínimo!!!). Não use aquela cueca velha. Não faça NUNCA cocô de porta aberta. Nem com um mês nem com vinte anos de casado. Fique em silêncio. Não conte os minutos, se você os conta é sinal de que o tempo não está passando depressa como deve ser quando se está ao lado de quem se ama. E como diria outra música do Kid Abelha: ‘Desde que estamos aqui eu não quero mais saber quanto tempo se passou, quem sou eu e onde estou’. Só assim você poderá, quiçá, viver um amor Grand’ Hotel, que segundo a própria Paula se trata do Grand’ Hotel de Bains de Veneza, aquele do romance Morte em Veneza do Thomas Mann depois transformado em filme por Lucino Visconti. No livro, um senhor de meia idade, ao passar as férias em Veneza se encanta por um adolescente e vive dias de intenso desejo reprimido por um garoto que em tudo representa o que ele já não mais é e nem possui.

Acho que o título é só uma homenagem à obra literária, pois a letra da música não chega a esse grau de platonismo. Será que não? Bem, pelo menos na letra, o casal já viveu uma paixão que foi atropelada por um caminhão, ‘sem teus carinhos e tua atenção’. Porque, por mais doloroso que possa ser, isso acontece com mais freqüência do que a gente queria. Quando acaba a paixão, acaba também qualquer consideração que você tinha pelo outro porque a paixão diferente do amor é um sentimento egoísta que só serve enquanto satisfaz nossa persona hedonista. Como a própria Paula já cantou: ‘quem ama, ama o amor e não outra pessoa’ e que eu já disse aqui mesmo nesse espaço que acho que essa frase se adequa mais à paixão do que ao amor.

Seguindo na música, Paula termina com algumas indagações:

‘Qual o segredo da felicidade?/Será preciso ficar só pra se viver? Qual o sentido da realidade?Será preciso ficar só pra se viver?’

Acho que todas essas perguntas não têm respostas. Mas por que, desde os primórdios, as pessoas não se cansam de perguntá-las? Por que, eu, numa madrugada de segunda-feira, sozinho num apartamento perdido na cidade, estou escrevendo estas palavras? Por que você está me lendo? Por que buscamos essas respostas? Qual o segredo da felicidade? Da sua, da minha? Ela existe? Onde ela está? Vem sozinha ou acompanhada? Está num sorvete de pistache que você toma ao lado de alguém numa tarde praieira? Ou no topo daquela montanha em que você medita sozinho? Existe um caminho? Ou pelo menos um atalho que a gente saiba que vai ser menos espinhoso? Qual o sentido da realidade? Será que alguma coisa nisso tudo faz sentido? Será que a vida é mesmo sempre um risco? Você tem medo do perigo? E, finalmente, por que mesmo tendo todas essas perguntas a serem respondidas, a gente quer encontrar alguém pra viver um amor Grand’ Hotel?

Talvez porque seja mais fácil dividir as dúvidas. Talvez porque seja mais prazeroso dividir as alegrias. Somos seres gregários e isso nem o passar dos milênios irá mudar. Ficar só pra se viver. Só pra se viver. Será? Mesmo que se transforme em ‘bom dia’, ainda assim quero viver um grande amor. Sem exagerar a dose. E assim, quero adiar o inevitável atropelamento. Mas quem sabe, me desvio do caminhão e sou pego de raspão por uma bicicleta. E neste momento, terei alguém pra dizer: ‘Oh, baby, não chore. Foi apenas um corte’.


Grand' Hotel


Composição : George Israel / Paula Toller / Lui Farias

Se a gente não tivesse feito tanta coisa,
Se não tivesse dito tanta coisa,
Se não tivesse inventado tanto
Podia ter vivido um amor Grand' Hotel.

Se a gente não dissesse tudo tão depressa,
Se não fizesse tudo tão depressa,
Se não tivesse exagerado a dose,
Podia ter vivido um grande amor.

Um dia um caminhão atropelou a paixão
Sem teus carinhos e tua atenção
O nosso amor se transformou em "Bom Dia"...

Qual o segredo da felicidade?
Será preciso ficar só pra se viver?
Qual o sentido da realidade?
Será preciso ficar só pra se viver?