sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

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"Cantar é rezar duas vezes" dizia Santo Agostinho. Se for verdade o que disse o mais filosófico dos santos, então acho que sou uma das pessoas mais religiosas do planeta. Pois vivo cantando. E canto para não tombar. Ou como dizem os mexicanos quando passam por um mau momento, no me voy a quebrar. E foi justamente para não me deixar cair que cantei ou mesmo recitei essa música em alguns momentos cruciais da minha vida. Às duas da manhã, na cozinha, bêbado, com amigos mais bêbados que eu. Ou baixinho no chuveiro, deixando a lágrima escorrer junto com a água quente. Vai ver que é minha sina andar distraído, impaciente e indeciso. Hoje sigo adiante, ainda confuso, mas tão tranqüilo e tão contente.

Se você é fã da Legião Urbana, já sabe qual é a música que tentarei decifrar hoje aqui. Difícil essa minha missão. Diria quase impossível. Me rendo à Esfinge e me deixo ser devorado.

Renato Russo, ao lado do Cazuza, foi um dos maiores letristas do rock nacional, uma espécie de Rimbaud tupiniquim pós-punk. Gosto muito da figura do Renato, dessa coisa que ele mesmo rejeitava de ser um messias daquela geração perdida. A história de Renato começa bem antes do estouro do primeiro disco da Legião Urbana. Começa em Brasília com o Aborto Elétrico e continua com uma fase solo mais lírica em que ele se auto-intitulava O Trovador Solitário. Renato foi um gênio, um cara que escrevia canções de amor, de cunho político, satíricas, engraçadas, todas com a mesma competência. Um ídolo amado por milhões, mas que se queixava de ir para o quarto de hotel sozinho. A metralhadora giratória que atirava para todos os lados. A criança que não tinha medo do escuro, mas pedia para deixar as luzes acesas. O cantor de voz grave e tocante que, mesmo contra todos os avisos de sua gravadora de que Laura Pausini era a Sandy italiana, gravou La Solitude. O artista sensível que ao gravar um disco que homenageava o levante de Stonewall, escolheu canções tão singulares quanto Send in the Clowns do espetáculo A Little Night Music da Broadway à Cherish da Madonna (sim, aquela mesma do clip com os sereios sarados). Renato foi um visionário, alguém que via o que quase ninguém via. E como acontece com os bons, morreu jovem.

Tenho andado distraído, impaciente e indeciso/Ainda estou confuso/Só que agora é diferente/Estou tão tranqüilo e tão contente.

Quase sem Querer do Disco Dois tem sido o meu 'I Will Survive' pessoal porque tudo na letra dessa música me diz que eu tenho que seguir adiante, mesmo que eu não saiba para onde eu esteja indo, como em outra música da Legião, Só por hoje (que ganhou esse título por causa do lema dos Alcoólicos e Narcóticos Anônimos): Não sei pra onde estou indo/Só sei que não estou perdido.

Quantas chances desperdicei/quando o que eu mais queria/era provar pra todo mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém

E você tem desperdiçado muitas chances? Já se olhou no espelho hoje e percebeu que o seu maior inimigo é você que criou um rótulo de si mesmo e agora está preso dentro dele? Você que se inventa moderno, que entende tudo de cinema alternativo. Ou você que se inventa livre demais e sai por aí com uma bata branca e uma sandália rasteira, falando coisas tão profundas quanto ‘comi capim cidreira no campo e lembrei-me de vovó, tempo de uma infância feliz onde a carne da galinha não tinha hormônio’. Já parou para pensar que a energia gasta na construção dessa sua pseudo-imagem seria mais bem utilizada se você fosse apenas o que é de verdade? O problema é que não queremos nos desamparar demais. Por isso é bom fazer parte de uma tribo, sempre tem uma muletinha por perto, alguém que vai rir das nossas piadas sem graça.

Me fiz em mil pedaços/Pra você juntar/E queria sempre achar explicação pro que eu sentia/Como um anjo caído fiz questão de esquecer/Que mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira/Mas não sou mais tão criança/A ponto de saber tudo

Quem é que nunca se quebrou em mil caquinhos para que fosse colado por outra pessoa? Que se olhou no espelho enquanto as lágrimas escorriam e achou linda aquela dor profunda? Os casos são muitos, meus ou de amigos próximos. Um amigo sabendo que o namorado ia terminar a relação, tomou uma superdose de Dramin no momento em que subia o elevador do prédio dele, para desmaiar exatamente no momento em que ouvisse o veredicto sobre o ponto final. Tem também outra amiga que falou que tinha comprado uma arma e que ia matar a nova namorada do ex. Casos e mais casos de pessoas que se esqueceram da auto-estima e se tornaram sombras daquela pessoa alegre que um dia foram no início da relação. Se espelharam demais numa imagem que não mais os refletiam. Mas chega o dia em que toda pessoa de mente sã, resolve recomeçar e descobre que o mundo não gira mais em torno do seu umbigo. Como adultos e não como crianças que vão ganhar um pirulito se pararem de chorar.

Já não me preocupo se eu não sei por que/Às vezes o que eu vejo quase ninguém vê/Eu sei que você sabe quase sem querer/Que eu vejo o mesmo que você

Enxergar além talvez seja um fardo. Sempre penso na felicidade do alienado. Será que ele é mesmo feliz? Ou será que ele só varre a sujeira para debaixo do tapete? Mas eis que chega o dia em que o alienado não dá mais conta de tanto pó acumulado que, com o passar dos anos, acabou se transformando num câncer. Nesse ponto, sou partidário da filósofa Márcia Tiburi e deixo solta a pergunta: Por que as pessoas não se enfrentam com a dureza da experiência de viver? Um dos meus autores favoritos, J. D. Salinger, cuja obra mais conhecida é O Apanhador no Campo de Centeio, escreveu uma novela notável chamada Seymor: uma apresentação. Nessa novela, o personagem Buddy Glass descreve em detalhes a personalidade física e psicológica do irmão Seymor que, em inglês se pronuncia see more (ver mais) insinuando sua condição de vidente. Quando a história começa Seymor já está morto, pois cometeu suicídio, o que nos leva a uma outra questão: será que aqueles que enxergam mais não agüentam o peso da vida? Recomendo fortemente o livro, assim como toda obra de Salinger.

Tão correto e tão bonito/O infinito é realmente um dos deuses mais lindos

Nesse momento, a letra nos remete a uma indefinição de espaço e tempo, celebrando o Infinito, como um dos deuses mais lindos. Como Renato cantaria mais tarde em Pais e Filhos, somos um grão de areia. Um grão de areia perdido num universo de infinitas possibilidades. E por isso continuamos seguindo, distraídos, impacientes, indecisos, confusos, mas tranqüilos porque temos (ou esperamos ter) essa consciência de nossa pequenez. Eu sei que nada sei.

Esse foi o post mais trabalhoso do blog até agora. Essa letra é muito cascuda. Pensei em desistir em alguns momentos quando vi onde tinha me metido, até porque, como conversei com um colega, ela é muito subjetiva. Você verá que alguns trechos não foram comentados, fique à vontade se quiser contribuir com esse novíssimo blogueiro. Sua contribuição pode enriquecer nossos debates. Além da Legião Urbana, gravaram Quase sem Querer, Zélia Duncan e Maria Gadu.

Dedico este post a Luciano Falcão e Mariposa Apaixonada de Guadalupe, duas pessoas que vêem o que quase ninguém vê.

Quase Sem Querer

Legião Urbana

Composição: Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Renato Rocha

Tenho andado distraído,
Impaciente e indeciso
E ainda estou confuso,
Só que agora é diferente:
Estou tão tranqüilo e tão contente.
Quantas chances desperdicei,
Quando o que eu mais queria
Era provar pra todo o mundo
Que eu não precisava
Provar nada pra ninguém?!...
Me fiz em mil pedaços
Pra você juntar
E queria sempre achar
Explicação pro que eu sentia.
Como um anjo caído
Fiz questão de esquecer
Que mentir pra si mesmo
É sempre a pior mentira,
Mas não sou mais
Tão criança a ponto de saber tudo.
Já não me preocupo se eu não sei por que.
Às vezes, o que eu vejo, quase ninguém vê
E eu sei que você sabe, quase sem querer
Que eu vejo o mesmo que você.
Tão correto e tão bonito;
O infinito é realmente
Um dos deuses mais lindos!
Sei que, às vezes, uso
Palavras repetidas,
Mas quais são as palavras
Que nunca são ditas?
Me disseram que você
Estava chorando
E foi então que eu percebi
Como lhe quero tanto.
Já não me preocupo se eu não sei por que.
Às vezes, o que eu vejo, quase ninguém vê
E eu sei que você sabe, quase sem querer
Que eu quero o mesmo que você.





4 comentários:

  1. AH! Mas que post mais bonito! É. Ri, música ajuda, e muito!

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  2. Tb adorei...e super me identifico,...

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  3. quale? fez psicologia escondido? me espionou enquanto chorava e quebrava umas coisas no quarto? eu não gosto de legiao, vc bem sabe, ou talvez nao goste dos fãs de legião, mas ele era poeta e inteligente mesmo. o pior é reconhecer o que os outros reconhecem em você. e enquanto lia seu texto, tantas músicas me vieram à cabeça...

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  4. Oi Richard nao sei se eu estou enganada... mas essa parte que voce diz "Casos e mais casos de pessoas que se esqueceram da auto-estima e se tornaram sombras daquela pessoa alegre que um dia foram no início da relação. Se espelharam demais numa imagem que não mais os refletiam.", eh bem proxima do que a musica Segredos (Frejat) diz em "E eu vou trata-la bem para que ela nao tenha medo, quando comecar a descobrir os meus segredos..." .

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