sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Eu não quero ter razão...


Não sei se eu caso ou compro uma bicicleta. Já pensaram no sentido literal dessa frase? Pois durante toda minha vida, essa frase sempre passou batida como mais uma dentre tantas de cunho popular, já que eu não acho que a voz do povo é a voz de Deus. Mas há algum tempo venho pensando que esse negócio de casar ou comprar uma bicicleta é uma coisa séria. E comecei a observar as vantagens e desvantagens de um e de outro. O fato é que talvez a vantagem de um seja exatamente a desvantagem do outro. Vamos lá. Casar = convenção, comodidade, estabilidade, aconchego, posse, intimidade, compra do carro, férias no Guarujá, pagamento da mensalidade do colégio dos filhos, dentre outras questões. Comprar uma bicicleta (mas aqui quero que você pense que esse simples veículo ecologicamente correto vai de te levar o mais longe que suas pernas puderem pedalar) = liberdade, medo do desconhecido, falta de referências, conhecer pessoas e culturas diferentes, desamparo, cansaço, fome, instinto de sobrevivência, entrar em contato consigo mesmo. E então? Já tem a resposta? Quer casar ou comprar uma bicicleta?

Sei que é uma questão difícil de ser respondida, assim, na lata. Não posso ter um pouquinho dos dois?, você deve estar se perguntando. Acredito que sim. Sempre acredito no equilíbrio das coisas. Mas acontece que, muitas vezes, não conseguimos conciliar esses dois extremos. Então nossa bicicleta vai ficando de lado, enferrujadinha, coitada... só saindo de lá praquele raro passeio uma vez a cada seis meses no Ibirapuera.

Diferente do que aconteceu com a personagem da música de hoje, que parou do lado de lá, voltou pela contramão, de costas pro mundo. Se você é fã de MPB, já sabe de quem eu estou falando. E para quem diz que a nossa música é um saco de velharias, Fernanda Porto está aí para provar o contrário, trazendo uma cara nova para a música brasileira, com sua mistura de bossa eletrônica e drum n' bass.

De Costas Pro Mundo é a primeira faixa do primeiro disco da carreira de Fernanda Porto. O disco que tem o nome da cantora foi gravado em 2002, alçando Fernanda ao estrelato nacional por causa da regravação da música Só Tinha Que Ser Com Você do Tom Jobim que fazia parte da trilha sonora da novela Um Anjo Caiu do Céu.

Fernanda Porto tem uma explicação curiosa para a composição de De Costas Pro Mundo: "Essa música era uma bossa-nova, que fiz há muito tempo. Estava dançando com meu namorado numa festa e fiquei apaixonada por outro cara, ali mesmo. Aí voltei para casa e compus inspirada no outro. Escolhi bossa, que é baixinho, para o meu namorado não ouvir".

Achei fascinante essa situação e me identifiquei de cara. Quem é que nunca passou por isso? Citando outro dito popular, quem é que nunca ficou irritado porque levou ‘bolo pra festa’? As situações são muitas e variadas: um estranho numa balada ou num restaurante com quem você cruza ‘acidentalmente’ quando está indo ao toalete; ou mesmo um amigo do marido, seu conhecido há anos, que de repente você começa a ver com outros olhos porque acha que ele está diferente. Não, ele não está diferente. O que está mudada é a situação em si. Sua prisão doméstica e abafada faz com que qualquer ventinho pareça um tornado de proporções catastróficas. Falando nisso, me vem à cabeça várias anti-heroínas da literatura, desde Emma Bovary já citada aqui mesmo neste espaço à Irina McGovern do contemporâneo O Mundo Pós-Aniversário. Mas para mim, a personagem que mais exemplifica, essa mulher sem vocação para o tédio da relação a dois se chama Helena e mora no Leblon. Não, isso não é uma piadinha infame. Helena, personagem escrita por Manoel Carlos para a novela Mulheres Apaixonadas e interpretada magistralmente por Christiane Torloni era uma mulher aventureira, sexual e sem talento algum para o morno. Para quem acha que novela é somente entretenimento para os alienados, sugiro uma rápida passada por aqui. Descontada a baixa qualidade do vídeo que tem pouco mais de cinco minutos, espero que você o assista até o fim para ouvir frases do tipo: ‘Talvez eu não tenha vocação para a fidelidade’. ‘Sou mesmo uma anti-heroína, aquela que não dá lição de moral no final da história e que é até capaz de alguns deslizes pra ser feliz’. ‘É incrível como se pode trair mesmo se amando muito. Vai ver é porque o amor não tem nada a ver com fidelidade.’ Tudo isso dito pela protagonista da novela no horário de maior audiência da TV aberta! Uma salva de palmas para o Maneco!

De volta à letra da nossa música de hoje, o que Fernanda Porto nos diz é que, de certa maneira esse jogo de adultos pode ter conseqüências sérias e é preciso também ser adulto para poder arcar com elas, saber que você pode parar do lado de lá, voltar pela contramão, já que os adúlteros nem sempre são bem compreendidos. O estabelecido é uma relação monogâmica entre duas pessoas. Até mesmo nas nossas canções, se formos analisar, 90% das letras vão falar de juras de amor eterno e poucos compositores se atreveram a ser um pouco mais ousados nessa questão. Cito como exemplo de nota dissonante, nosso querido Raulzito, que compôs uma música (A maçã) só para falar sobre o tema : ‘Se esse amor for ficar entre nós dois, vai ser tão pobre, amor/ Vai se gastar’, ‘Amor só dura em liberdade/O ciúme é só vaidade/Sofro, mas eu vou te libertar/ O que que eu quero se eu te privo do que eu mais venero que é a beleza de deitar?’

Uma ‘traição’ ou uma puladinha de cerca, dê o nome que lhe convier, talvez não seja um ato tão banal assim. Como diria Guilherme Arantes: ‘Pra que tanta loucura por tão pouca aventura?’ Eu te respondo pra quê, Guilherme. Pra se sentir vivo, para estar perto do fogo. É por isso que damos um salto mortal e nos largamos do avião sem pára-quedas ou rede de proteção. Afinal de contas, o ser humano é uma raça teimosa e quando sente bem de perto a baforada da morte, aí é que tem mais vontade de viver. Como diria Marina Lima: ‘À beira do abismo, queira ou não queira, estamos prestes a voar. ’ E aqui não falo exclusivamente de uma relação afetiva. Andar de bicicleta não é a escolha simplista entre fidelidade e infidelidade. Quando me referi a essa metáfora no início do texto, falava antes do poder do livre-arbítrio, do direito às incertezas. Como canta Moska em Móbile no Furacão: ‘Somente eu posso saber o que me faz feliz’. Concordo com ele e acho que as estruturas, de uma forma geral, precisam ser balançadas, é necessário experimentar um caminho diferente vez por outra. Ou então transformar essa pulsão por mudanças em arte. Como fez a própria Fernanda Porto, que nunca mais deve ter visto o rapaz que a deixou tão inspirada a ponto de fazê-la compor uma música.

Dedico este post a F.M., a adúltera mais doce que eu conheço.


De Costas Pro Mundo

Composição: Fernanda Porto

Fugir com você eu quero
Largar tudo e parar por ai
Nem que eu pare do lado de lá
e volte pela contramão...

Eu tô chegando
Eu jogo a moeda na mão
É cara ou coroa, nem sei
se é para ir ou não ir

Eu tô chegando
Um giro, um salto mortal
Me larguei do avião
cai bem perto de você

Eu tô chegando
De costas para o mundo, eu sei

O mundo que vire pra lá

O mundo que gire de novo



Um comentário:

  1. Não havia prestado atenção à letra de "Maçã" do Raul:
    ‘Se esse amor for ficar entre nós dois, vai ser tão pobre, amor/ Vai se gastar’, ‘Amor só dura em liberdade/O ciúme é só vaidade/Sofro, mas eu vou te libertar/ O que que eu quero se eu te privo do que eu mais venero que é a beleza de deitar?’

    Poucas palavras e muito tempo para entender o sentido visceral que juntas elas trazem. Pode-se levar uma vida inteira para entender, fingir ou mesmo evitar essas situações. Melhor pra quem entende à tempo!

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