quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Melancolia d'alma


Certo dia, naquele momento corrido do horário de almoço da firma, já na prorrogação do cafezinho, disse brincando que quando morresse, ia querer ver escrito na minha lápide: Acabou o recreio. A afirmação nonsense causou gargalhada, claro. Eu mesmo já cheguei a imaginar, uma viúva de negro da cabeça aos pés, tristíssima, aos prantos, voltando do sepultamento do marido, cujo corpo ainda nem esfriou, quando, de repente, olha para a lápide vizinha e vê o debochado epitáfio. Então, essa viúva tem uma crise de riso tão histérica que sai do cemitério amarrada numa camisa de força sob comentários piedosos: ‘Coitada, não suportou a dor.’ Confesso que saber que causaria estranhamento em alguém mesmo depois de morto é uma idéia que me envaidece. Como já disse o finado Dias Gomes: ‘Se você não veio ao mundo para incomodar, então não deveria ter vindo.’ Mas por outro lado, não sei se esse epitáfio, a última e derradeira frase, seria tão revelador de minha personalidade. Talvez seja leve demais. No meu íntimo, eu sei que eu, assim como todos os meus, carrego a marca da tragédia na alma. E por esse motivo já deixo avisado que quero algo mais fatídico, mais certeiro. Algo como – jurei mentiras e sigo sozinho.

Há quem diga que o brasileiro é um povo alegre. Temos sustentado por séculos esse nosso jeitinho malandro pautado na tríade sexo-mulher-carnaval. Eu tenho cá meus pontos de vista dissonantes. Apesar de toda essa alegria-exportação que vem desde os tempos de Carmem Miranda e de estereótipos como o Zé Carioca da Disney, acho que somos um país de dimensões continentais e um povo muito mais plural e multifacetado do que sonha a nossa vã filosofia. Nem só de ziriguidum vive nossa nação. Exemplos de nossa condição irônica e melancólica é o que não falta na música brasileira. De Chico Buarque (Deus é um cara gozador/Adora brincadeira/Pois pra me botar no mundo/Tinha o mundo inteiro/Mas achou muito engraçado me botar cabreiro/Na barriga da miséria/Nasci brasileiro) à Belchior (Por força desse destino/Um tango argentino/Me cai bem melhor que um blues) várias são as canções que desfiaram a nossa condição de latino-americanos, talvez um tanto deslocados por causa da barreira lingüística, já que somos o único país das Américas que fala português.


Gosto da música de hoje pelo que ela contém de força e, ao mesmo tempo, resignação em sua letra. Sangue Latino de João Ricardo e Paulinho Mendonça nos empurra para frente ao mesmo tempo em que nos traz uma consciência de fragilidade. Essa música foi gravada em 1973, no disco Secos e Molhados. A aparição do grupo foi transgressora para a cena do showbizz brasileiro. Ou você acha que é todo dia que aparece um Ney Matogrosso, performático que só ele, com aquele figurino provocante e aquela maquiagem ousada cantando ‘O Vira’? Se a cena ainda causa incômodo em algumas pessoas mais conservadoras em 2011, imagina no auge dos anos de chumbo da ditadura militar! Mas como diria um amigo meu, Ney chegou chegando e se impôs com sua presença forte e corajosa. Está aí até hoje para provar que é um ARTISTA. Sim, com todas as letras em maiúsculo. Além de ser uma virtuose, um artista visceral e entregue ao seu público, é também um dos mais afinados intérpretes da MPB.


Secos e Molhados (agora falo do disco e não da banda) foi importantíssimo para a formação de um público brasileiro consumidor de rock, pois paralelo ao trabalho dos Mutantes, trazia para a nossa música tupiniquim elementos conhecidos lá fora, mas pouco experimentados aqui como o glam rock e o rock progressivo. Até mesmo a capa do disco foi eleita pela Folha de São Paulo como a melhor de todos os tempos de discos brasileiros.


Voltando à letra, jurar mentiras é um hábito conhecido do povo latino, principalmente daqueles que, de alguma forma se envolveram ativamente na luta por um mundo mais justo e democrático. Os que pegaram em armas, os que se embrenharam em matas desconhecidas treinando táticas de guerrilhas, os que bateram panelas na Plaza de Mayo clamando pelo direito de chorar seus mortos. Essas pessoas sabem muito bem que o mundo não está dividido maquiavelicamente entre o bem e o mal. Ou como diria Caetano, sabem que o mal é bom e o bem, cruel.


E seguir sozinho, antes de ser uma questão latina, é uma condição essencial de todo e qualquer ser humano. Como diz Elisa Lucinda em seu livro Parem de Falar Mal da Rotina: “Sei que viver é uma experiência individual porque é por dentro de cada um que ela passa, a vida. Prova disso é que, sozinhos, enfrentamos o nascimento e a morte. Estamos diante desses eventos ainda que mais gente coadjuve ou figure no ambiente. Mesmo tendo para muitos tanta importância o par, em especial o par romântico, é fundamental nosso autoconhecimento, nossa conversa particular com a gente mesmo.”


E assim brincando de não ser sozinho dentro de tantas solidões, vamos seguindo por caminhos tortos como os personagens do livro Cem Anos de Solidão do Gabriel Garcia Marquez. A saga secular dos Buendia é uma metáfora das ditaduras latino-americanas, dizem alguns. Pode até ser. Mas o que mais me impressiona nesse livro é a força e a estranheza de cada personagem, seres fantásticos e tão reais. Li o livro anos atrás, mas alguns personagens são tão marcantes que até hoje não consigo tirá-los da memória. Aureliano Buendia, José Arcádio e principalmente, Úrsula, a matriarca da família, uma mulher sólida como uma rocha, conformada com o mundo de homens desvairados que a cercam.


Tenho certeza que, assim como eu, você conhece várias Úrsulas por aí. Ela pode ser sua mãe, tia, avó, irmã. Úrsula é toda a mulher que um dia perdeu uma promoção no trabalho para cuidar das filhas que estavam com catapora. É a mulher que criou os filhos sozinha enquanto o marido tinha a mania de devaneios, ou como diria Belchior em À Palo Seco, já citada aqui: é aquela pessoa que se desesperava no tempo em que você sonhava. Mulheres cativas, mas jamais vencidas. Pois como diria o mais icônico de nossos revolucionários: "Déjeme decirle, a riesgo de parecer ridículo, que el revolucionario verdadero está guiado por grandes sentimientos de amor.."


Ps.1: Sangue Latino foi gravada pela banda gaúcha Nenhum de Nós, por Renata Arruda, Vânia Abreu e Nando Reis.

Ps. 2: Garcia Marquez já recebeu algumas propostas milionárias de estúdios de Hollywood para vender os direitos da obra Cem Anos de Solidão. Nunca aceitou, segundo ele, para não estragar a capacidade de imaginação dos leitores.


Sangue Latino

Secos e Molhados

Composição: João Ricardo / Paulinho Mendonça


Jurei mentiras

E sigo sozinho

Assumo os pecados

Os ventos do norte

Não movem moinhos

E o que me resta É só um gemido...
Minha vida, meus mortos

Meus caminhos tortos

Meu Sangue Latino

Minh'alma cativa...

Rompi tratados

Traí os ritos

Quebrei a lança

Lancei no espaço
Um grito, um desabafo...

E o que me importa

É não estar vencido

Minha vida, meus mortos

Meus caminhos tortos

Meu Sangue Latino

Minh'alma cativa...


Dedico este post à Marizabel Pacheco.




Um comentário:

  1. Clap, clap, clap...
    Lindo post! Adorei que o tenha compartilhado comigo. Foi uma grande prazer. E, sim, me identifiquei.
    Aqueles que carregam alguma tragédia na alma, vivem melhor, pois sabem o que pode ser perdido no resto do caminho a ser trilhado.
    E lá vou eu, seguindo sozinha...

    ARRASA, baby!

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