segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Café sem açúcar



Começou numa sessão de cinema. A história até nem era nada demais. E na seqüência teve um telefonema falando de coincidências astrais. Tantos planetas parecidos e nada disso parecia em vão. Versos soprados bem junto ao ouvido. Era o início de uma nova paixão.

A cena descrita acima lhe é familiar? Não precisa ser exatamente numa sessão de cinema, mas se bem que não é nada mau para o começo de uma relação o escurinho do cinema. Uma mão boba aqui, uma pegada mais forte acolá. De preferência com a sala vazia para não ter que escutar reclamação do vizinho de poltrona que pagou pelo ingresso e tem todo o direito de assistir ao filme sem ser incomodado. Afinal de contas, sala de cinema é para ver filmes e não namorar, certo? Há controvérsias... Os apaixonados que o digam, pois quando se está apaixonado, você enxerga tudo de um ponto de vista diferente, que é aquele ponto de vista que só interessa a você. Ficamos egoisticamente bobos, achando que o mundo gira ao nosso redor. E a pele melhora, e o cabelo brilha, e os beijos intermináveis fazem com que os olhos mudem de cor. Interessante notar que, segundo a tradicional e milenar medicina chinesa, a idade das pessoas é medida pelo brilho dos olhos. Acho isso fascinante, pois como já disse o Léo Jaime, envelhecer é esvaziar-se de desejo e esvaziando-se de desejo, perdemos o brilho dos olhos.


Do outro lado da moeda, há quem faça apologia a sentimentos mais brandos como uma velha senhora italiana centenária, exemplo de vitalidade que ao ser perguntada sobre o seu segredo de longevidade e boa saúde, disse que era só seguir três regrinhas básicas: comer pouco, não ter arrependimentos e não casar. Na mesma linha de raciocínio, o filósofo francês André Comte-Sponville no seu livro A Felicidade, Desesperadamente nos alerta sobre os perigos do desejo. Segundo Comte-Sponville, que parte de vários preceitos da filosofia clássica e moderna, inclusive um do próprio Buda que diz que ‘todo sofrimento nasce do desejo’, quem espera nem sempre alcança. A falta é o combustível do desejo e toda vez que alcançamos uma meta, nos saciamos rapidamente e já caímos num vazio à procura do próximo objeto nem tão inatingível assim. O autor cita como exemplo aquela criança que, dois meses antes, já começa a perguntar pelos pais da bicicleta que irá ganhar no dia de natal. O tão sonhado dia chega e o que acontece? Ela dá voltas e mais voltas em seu sonho materializado para logo se sentir enfastiada, deixar o veículo de lado, ir para um canto e pegar birra. Os pais decepcionados com o filho, colocam-no de castigo para ver se ele aprende a ser menos mimado. Mas o que esses pais não sabem é que essa criança está apenas exercitando um comportamento que irá repetir durante toda a vida adulta. Comportamento que eles, inclusive repetem todos os dias, quando acordam de manhã e se olham sem se verem. Cadê aquela paixão toda? Afinal de contas, eles não se escolheram? Não deveriam estar em êxtase por estar vivendo ao lado daquela pessoa por quem juraram amor e fidelidade eternas? O contrário da paixão talvez seja a rotina, que como diria minha amiga Babi, é o facão do amor. E é sobre esse facão afiado que a música de hoje fala.

Muitas músicas brasileiras já cantaram esse sentimento que tentamos evitar ao máximo. Ana Carolina em O Rio (Nós dois que sequer nos parecemos/E não cabemos no mesmo espelho/Mas nos olhamos toda manhã), Cazuza em O Nosso Amor a Gente Inventa (Te ver não é mais tão bacana quanto a semana passada/Você nem arrumou a cama/Parece que fugiu de casa), Caetano Veloso em Eclipse Oculto (Tipo de amor que não pode dar certo sob a luz da manhã e desperdiçamos os blues do Djavan) e Kid Abelha em Grand’Hotel (O nosso amor se transformou em bom dia/Qual o segredo da felicidade?/Será preciso ficar só pra se viver?) sem contar em Cotidiano de Chico Buarque que talvez seja a mais célebre de nossas canções a constatar a mesmice do dia-a-dia. Mas escolhi especificamente essa música porque acho que, apesar do lamento dos dias iguais, seu letrista consegue acrescentar uma busca por sabedoria nessa relação sem novidades.

Estou falando de Por Onde Andei, música composta por um dos maiores letristas do nosso pop, Nando Reis, e gravada pelo ruivo nos CDs MTV ao Vivo de 2005 e Luau MTV de 2006.


A maneira como Nando abre a música é genial pois, quando fala ‘Desculpa, estou um pouco atrasado, mas espero que ainda dê tempo’, imediatamente qualquer pessoa assimila esse trecho como uma situação corriqueira de atraso, alguém que ficou preso no trânsito, que perdeu o horário. Mas logo em seguida, Nando tasca ‘de dizer que andei errado e eu entendo as suas queixas tão justificáveis e a falta que eu fiz nessa semana, coisas que pareceriam óbvias até pruma criança’. Ou seja, ele já abre a canção com essa dubiedade que é tão interessante. O interlocutor pede desculpas pelo atraso, algo que cria uma identificação com qualquer pessoa que já passou por esse momento tão banal e ao mesmo tempo constrangedor, para logo em seguida a letra desembocar em algo mais grandioso, uma relação pré-existente onde quem pede desculpas está se martirizando pela sua ausência na vida daquela pessoa e não só por aquele atraso em questão.


Logo em seguida vem o trecho:
Por onde andei/Enquanto você me procurava/E o que eu te dei/Foi muito pouco ou quase nada/E o que eu deixei/Algumas roupas penduradas/Será que eu sei que você é mesmo tudo aquilo que me faltava?

Nessa parte, acho que o facão da rotina corta sem dó nem piedade a relação a dois. Diferente do que Vanessa da Mata canta em Boa Sorte, quando diz que o bom encontro é de dois, aqui Nando fala de uma relação de uma via só, uma relação onde não existe troca; uma relação onde quem dá, recebe de volta a indiferença, o muito pouco ou o quase nada. Não há surpresas, só o óbvio da obrigação que ele deixou para o outro fazer, as tais roupas penduradas. Tudo isso dito na primeira pessoa mostra que o letrista faz a mea culpa e num processo de olhar para dentro, tem a consciência de que ele estava distante no momento em que a outra pessoa o procurava. E termina o refrão com uma frase dilacerante: Será que eu sei que você é mesmo tudo aquilo que me faltava? Nessa eterna e desequilibrada busca de encontrar alguém que nos complemente, acabamos nos relacionando com pessoas que, à primeira vista, tem todos os requisitos para nos preencher, pois quando estamos apaixonados inventamos um ideal de parceiro que deixa de existir quando é enxergado sob a ótica da convivência diária. Como naquela velha frase: quem ama, ama o amor e não outra pessoa. Discordo em termos dessa frase, porque acho que ela se adequa mais à paixão. E quando a paixão acaba (até os cientistas dão um prazo de validade de dois anos para esse singular sentimento) nos deparamos com nossas idealizações frustradas.

E quando nos frustramos, não nos resta outra possibilidade que não o mundo real. E dessa maneira, Nando continua a canção encaixando na letra, uma situação em que qualquer ser humano se sente desamparado, um choque de realidade na forma do roubo de um automóvel:


Amor eu sinto a sua falta/E a falta é a morte da esperança/Como o dia em que roubaram o seu carro/Deixou uma lembrança/Que a vida é mesmo uma coisa muito frágil/Uma bobagem, uma irrelevância/Diante da eternidade do amor de quem se ama


Ou como disse Renato Russo, em Quase sem Querer, já analisada aqui:
Me disseram que você estava chorando/E foi então que eu percebi como te quero tanto.

Dessa maneira, o autor da canção se redime, pois numa situação limite, seu amor é posto à prova. E com a letra de 2 Namorados da Fernanda Abreu que abriu o post de hoje, também o encerro para dizer que:


A vida sempre tem as suas surpresas. E na verdade o que aconteceu é que, no dia a dia, além das belezas, o que é defeito também apareceu. Um disse ao outro ‘paciência, tenho desejos diferentes dos seus; juntos buscamos a justa ciência de não dizer ao outro um simples adeus’.


Ps.: Sobre o que hoje foi dito, recomendo a leitura de Madame Bovary e o filme 500 dias com ela.


Dedico esse post à Barbara Melo.


Por Onde Andei

Composição: Nando Reis

Desculpe,
estou um pouco atrasado
Mas espero que ainda dê tempo

De dizer que andei errado

E eu entendo
as suas queixas tão justificáveis
E a falta que eu fiz nessa semana

Coisas que pareceriam óbvias até pra uma criança

Por onde andei
enquanto você me procurava?
Será que eu sei
que você é mesmo tudo aquilo que me faltava?
E o que eu deixei?
Algumas roupas penduradas

Será que eu sei
que você é mesmo tudo aquilo que me faltava?


Amor, eu sinto a sua falta

E a falta é a morte da esperança
Como o dia que roubaram o seu carro
Deixou uma lembrança que a vida é mesmo coisa muito frágil
Uma bobagem
, uma irrelevância
Diante da eternidade
do amor de quem se ama

Por onde andei
enquanto você me procurava?
E o que eu te dei foi muito pouco ou quase nada
E o que eu deixei?

Algumas roupas penduradas

Será que eu sei
que você é mesmo tudo aquilo que me faltava?


2 comentários:

  1. Eu ADORO essa musica, mas não havia prestado a devida atenção a letra.Vc realmente consegui me fezer redescobri-la!

    Adotei.

    Thiago

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  2. Nuss, eu nunca tinha prestado atenção nessa música tb. Quanta identificação rsrsrsrs Adorei !!!!!

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