segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Tinha suspirado...



Arfar, verbo intransitivo que significa respirar em ritmo fora do normal, com muito esforço; ofegar, arquejar. Começo o post de hoje com a definição do dicionário Houaiss para o verbo citado acima porque vou falar de uma canção que começa exatamente assim: Arfar/Dançar/Olhar de encontro/Dar de ombros e seguir já.

Quando penso nesse verbo – arfar – me vem logo à cabeça aqueles filmes ou novelas de época em que os figurinos das atrizes são aqueles vestidos que marcam a cintura com espartilhos apertadíssimos e suspendem o colo, deixando os seios voluptuosos sujeitos ao ir e vir de suas respirações. E como respiram nossas mocinhas românticas! E como suspiram! E arfam! Sejam as heroínas ultraromânticas de Jane Austen ou a ingênua Luisa do Primo Basílio que quase desmaia ao ler a correspondência do tal primo, como descreve o trecho do livro narrado pela voz edulcorante de Arnaldo Antunes em Amor, I Love you: "... tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!” Ah, o amor... e você tem arfado muito ultimamente? Não vale bronquite.

A música de hoje se chama Dois e foi gravada por Fernanda Abreu no disco Da Lata de 1995, um dos melhores discos brasileiros da década de 90. Em Da Lata, Fernanda dá continuidade a um trabalho primoroso que já vinha fazendo nos dois discos anteriores, principalmente no Sla 2 Be Sample de 1992 em que apresentou para o Brasil o virtuosismo de Rio 40º, canção dela e do Fausto Fawcet, que para mim, é até hoje, uma das letras mais bem escritas do pop nacional. Fernanda nessa música mostra todo o seu talento rítmico e técnica apurada. Ou você acha que é qualquer cantora que consegue cantar essa música? Já deu uma olhada na letra? Então veja e tire suas próprias conclusões. Teve um ano (não me lembro qual) que teve uma votação com urnas em todos os bairros do Rio de Janeiro para escolher a música da cidade. Quando Fausto Fawcet ligou para Fernanda e disse que Rio 40° tinha ganhado o segundo lugar seguido de Cidade Maravilhosa, Fernanda começou a comemorar porque em sua opinião Cidade Maravilhosa é Hors Concours. Concordo com os cariocas. Rio 40º é a cara do Rio de Janeiro, essa cidade de cidades misturadas.

Mas voltando à música de hoje, Dois é uma canção lado B de Fernanda, mas que acho belíssima pela sua leveza. E não poderia ser de outro jeito já que ela fala de paixão. Ou poderia, né? Se pensarmos que a paixão pode não ser leve o tempo todo, pois ela é vermelha e, às vezes, sangra.

Em entrevista á Marília Gabriela a escritora Martha Medeiros disse preferir à paixão ao amor. Mesmo que a paixão seja um sentimento que nos deixe à beira do precipício e o amor seja um barco velejando em almas calmas. Sob certos aspectos, concordo com Martha, pois acredito que sempre que nos apaixonamos por alguém, na verdade estamos nos apaixonando por nós mesmos. E se gostamos desse alguém é porque estamos gostando do bem que ele está nos fazendo. E se for uma relação saudável entre pessoas bem resolvidas, acho que a paixão pode fazer muito bem, fazer com que você tenha vontade de crescer. E seguir em frente, juntos mas separados. Dois. Nunca um. Dois seres que tem suas individualidades e diferenças, mas que seguem juntos. Como na canção : Seguir é o que marca o beat do meu coração.

Já conversei diversas vezes com amigos próximos sobre essa necessidade de ter alguém. Acho que o ser humano é forte o suficiente para ser feliz sozinho. Mas acho também que falta esforço da nossa parte para buscar essa solidão. Até por uma questão social e histórica, somos seres gregários. A iluminação de Buda está bem distante de nós que podemos sim, encontrar, essa tal iluminação numa segunda-feira à tarde, na cozinha de casa, discutindo com o companheiro (a) o cardápio do jantar. Como diz a letra: Mas é que sem você por perto/Mesmo em meio à multidão/Me sinto deserto/Certo da mais pura solidão.

Para encerrar, sugiro a todos a leitura de uma das obras-primas de Platão, O Banquete, que relata a reunião de amigos da qual participam Sócrates, Aristófanes e outros atenienses eminentes para discutir sobre o Amor e o Belo. O discurso de Aristófanes inicia-se com uma narração sobre tempos longínquos, quando havia deuses no céu e humanos na terra. Mas os humanos não eram da forma como somos hoje, e sim compostos de duas cabeças, quatro pernas e quatro braços. Éramos a perfeita, e bizarra, fusão entre duas pessoas. Existiam três variações sexuais possíveis, macho com fêmea, macho com macho ou fêmea com fêmea, dependendo do que combinasse melhor com cada criatura. E éramos todos felizes, inteiramente completos, já que tínhamos o parceiro perfeito atado ao próprio tecido do nosso ser. Dessa forma, todos nós, seres de cabeças duplas e membros octópodes, vivíamos plenamente satisfeitos, percorrendo nossas vidas sem sobressaltos, de forma ordeira e sonhadora. Não sentíamos falta de nada, não existiam necessidades não atendidas e principalmente, não queríamos ninguém. Já éramos inteiros.

Entretanto, nessa inabalável inteireza, nos tornamos excessivamente orgulhosos. Os deuses foram deixados de lado, não mais os adorávamos. O poderoso Zeus, soberano do Monte Olimpo, nos puniu pelo descaso, cortando ao meio todos os seres humanos. Todos os oito membros foram desligados para sempre, criando um mundo de entes sofredores e cruelmente separados. Nesse momento de separação em massa, Zeus impôs à toda a humanidade uma incômoda condição: a sensação surda e constante de que não somos inteiros.

Pois, eu ouso discordar de Zeus e digo: somos inteiros sendo um. Eu não quero o carma de ser metade de ninguém. Se quiser vir comigo, tem que ser assim: Dois.

Dois

Fernanda Abreu

Arfar
Dançar
Olhar de encontro
Dar de ombros e seguir já
Se quiser voltar
Se vier brindar
Seguir é o que marca o beat do meu coração
Alçar
Do ponto culminante o vôo leve
Mas é que sem você por perto
Mesmo em meio à multidão
Me sinto deserto
Certo da mais pura solidão
Calor que é bom colado
Ao corpo, ao rosto
Sensação de ver o mar incendiado de paixão

Ps.: Post em homenagem à Ana Cláudia e Antonio Carlos Tiva, dois queridos, fãs de Fernanda Abreu.


5 comentários:

  1. "Acho que o ser humano é forte o suficiente para ser feliz sozinho. Mas acho também que falta esforço da nossa parte para buscar essa solidão." Hoje estava em uma roda de amigos conversando exatamente sobre esse tema. Ainda não tenho certeza se nascemos para ser par ou ímpar nessa vida. Mas é bem mais confortável ter alguém ao nosso lado, depositar nela nossas expectativas, fazer nela nossas projeções, construir uma vida juntos... Mas soa covarde também... Muita coisa pra pensar e discutir... Blog bom é assim: inquietante, inteligente. Disse e repito: Vida longa pra isso aqui! =P

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  2. Obrigado, Amauri. Acho que esse blog ainda tem pano pra manga e a música brasileira é muito interessante e nos dá vazão para debater várias coisas, esmiuçar as letras ou, como o próprio nome do blog diz, decifrar o que está por trás delas.

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  3. Ai como e bom ter amigos pensantes, inquietos, e sensiveis.
    Como sempre, um belo texto Rica.

    Thiago

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  4. Thi, se tenho essas características que você citou, vc tb as tem, pq diferente do q dizem por aí, os iguais se atraem.

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  5. A solidão é legal por um tempo, mas a necessidade de outra pessoa é muito grande.
    Amei.

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