quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Amor rima com dor?


De repente, do riso fez-se o pranto. E de repente, você olha em volta e vê que, durante um bom tempo da sua vida, toda a sua trajetória foi construída de acordo com o reflexo que você recebia do outro. Sua imagem espelhada ao avesso. E como a única coisa constante da vida é a mudança, o que era doce virou sal. E ele foi embora. E o seu mundo caiu. E suas referências se esvaíram. Os seus amigos – que surpresa! – não eram seus amigos. Eram os amigos dele. E a sua vida profissional, bem, que vida profissional? Você está fora do mercado de trabalho há anos. Fez um curso livre aqui, outro ali, para matar o tédio dos dias. Para que trabalhar se sua vida conjugal já preenchia todos os fios do seu pensamento?

Várias são as canções da nossa música que retratam esse inevitável momento de ruptura que, todos nós, em algum momento da vida, passamos. Tudo que Vai, sucesso do Capital Inicial (Hoje é o dia/Eu quase posso tocar o silêncio/A casa vazia/Só as coisas que você não quis/Me fazem companhia/Eu fico à vontade com a sua ausência), Não Vale a Pena cantada por Maria Rita (É uma pena, mas você não vale a pena/Não vale uma fisgada dessa dor/Não cabe como rima de um poema de tão pequeno/Mas vai e vem e me envenena e me condena ao rancor) e, talvez, a mais desbragada letra de abandono gravada e regravada por várias intérpretes, mas que teve sua reverberação definitiva na voz de Elis Regina, que depois de cantá-la no Programa Ensaio da TV Cultura com o olhar desolado disse: É uma dor que não cabe nesse mundo. Acho que ninguém discordaria da opinião da Pimentinha. Não precisa nem escutar a letra de Atrás da Porta de Chico Buarque e Francis Hime inteira. Quer coisa mais doída do que esse trecho: 'E me agarrei nos teus cabelos/No teu peito, teu pijama/Nos teus pés, ao pé da cama/Sem carinho, sem coberta/No tapete, atrás da porta'? O amor próprio mandou lembranças.

A música de hoje não chega a ser tão excessiva. Talvez você ache que ela seja até agradável. E muito provavelmente já deve ter aumentado o som ou ter dançado enlouquecidamente enquanto ela tocava. Tudo isso porque ela é um rock delicioso. Lançada em 1984 no LP O Passo do Lui, que além dessa canção teve outras como Óculos, Me Liga e Romance Ideal que viraram hit e fizeram dessa banda uma febre nacional. Alguém já matou a charada? Depois de tantas dicas, ficou fácil, né? Estou falando de Meu Erro do Paralamas do Sucesso. O próprio Herbert Vianna disse que percebeu uma maior profundidade na letra quando ela foi regravada por Zizi Possi, tendo convidado a cantora para dividir o palco do Acústico MTV nos vocais dessa canção. A parceria foi tão boa que Herbert acabou compondo para Zizi outra bela música, Eu Só Sei Amar Assim.

Gosto muito da melodia de Meu Erro, acho mesmo que é uma pérola do nosso pop. E gosto mais ainda da letra que fala do término de um relacionamento que talvez nunca tenha sido inteiro em sua completude, em que o diálogo talvez não tenho sido um critério preponderante de escolha, já que o narrador diz que:

Eu quis dizer/Você não quis escutar/Agora não peça/Não me faça promessa/Eu não quero dizer/Nem quero acreditar/Que vai ser diferente/Que tudo mudou

Ou como diria Caio Fernando Abreu em Zero Grau de Libra:

O Sol entrou ontem em Libra. ... e porque Libra é o outro (quando se olha e se vê o outro, e de alguma forma tenta-se entrar em alguma espécie de harmonia com ele), e principalmente porque Deus, se é que existe, anda distraído demais, resolvi chamar a atenção dele para algumas coisas ... Neste zero grau de Libra, queria pedir a isso que chamamos Deus um olho bom sobre o planeta Terra, e especialmente sobre a cidade de São Paulo.O olho piedoso de Deus para esses casais que, aos fins de semana, comem pizza com fanta e guaranás pelos restaurantes, e mal se olham quando dizem coisas como "você acha que eu devia ter dado o telefone da Catarina à Eliete?" - e o outro grunhe em resposta.

Mas mesmo grunhindo em resposta, nessa eterna fuga da solidão, vamos nos apegando àquele outro que está sempre tão perto e tão disponível pr'aquela noite de inverno em que a gente procura um pé para nos esquentar debaixo do edredom. Como nos conta o poema de José Vicente na interpretação arrebatadora de nossa Abelha Rainha: A vida inteira resumida só no desejo da tua boca dizendo o meu nome, da tua mão conduzindo a minha mão, do teu corpo revelando o meu corpo, como se o mundo fosse pela primeira vez, você, o meu ponto de referência nessa cidade.

Mais eis que um dia aquela bela casa cai e de tanto nos orientar no prumo do outro, acabamos nos tornando secos, vazios.

O meu erro foi crer que estar ao seu lado bastaria. Ah, meu Deus, era tudo que eu queria! Eu dizia o seu nome. Não me abandone jamais!

Os versos acima são traduzidos perfeitamente por um trecho do livro Comprometida de Elizabeth Gilbert, em que ela relata o seguinte:

Tive uma amiga da faculdade que estreitou de propósito as opções da vida, como se quisesse se vacinar contra expectativas demasiado ambiciosas. Descartou a carreira e ignorou a sedução das viagens; voltou para a cidade natal e se casou com o namorado do curso secundário. Com confiança inabalável, anunciou que se tornaria “apenas” esposa e mãe. Mas, doze anos depois, quando o marido a trocou por uma mulher mais jovem, a raiva e a sensação de ter sido traída foram as mais ferozes que já vi. “Eu pedi tão pouco!”, não parava de dizer. Mas acho que ela se enganava; na verdade, pediu muito. Ousara pedir felicidade e ousara esperar que a felicidade viesse do casamento. Isso é tanto que é impossível pedir mais.

E o que nos resta fazer nesse momento de tamanho desamparo? Acho que a letra nos dá um indício do caminho a seguir. O segredo talvez esteja em não olhar para trás.

Dedico o post de hoje a todas as mulheres que não são felizes, mas tem um marido. Como diria, Caio F., Deus coloca o seu olhar mais generoso sobre elas.

Meu Erro

Os Paralamas do Sucesso

Composição: Herbert Vianna

Eu quis dizer
Você não quis escutar
Agora não peça
Não me faça promessas.

Eu não quero te ver
Nem quero acreditar
Que vai ser diferente
Que tudo mudou.

Você diz não saber
O que houve de errado
E o meu erro foi crer
Que estar ao seu lado
Bastaria
Ah, meu Deus
Era tudo o que eu queria
Eu dizia o seu nome
Não me abandone

Mesmo querendo
Eu não vou me enganar
Eu conheço os seus passos
Eu vejo os seus erros
Não há nada de novo
Ainda somos iguais
Então não me chame
Não olhe pra trás.

Você diz não saber
O que houve de errado
E o meu erro foi crer
Que estar ao seu lado
Bastaria
Ah, meu Deus
Era tudo o que eu queria
Eu dizia o seu nome
Não me abandone jamais.



sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Eu não quero ter razão...


Não sei se eu caso ou compro uma bicicleta. Já pensaram no sentido literal dessa frase? Pois durante toda minha vida, essa frase sempre passou batida como mais uma dentre tantas de cunho popular, já que eu não acho que a voz do povo é a voz de Deus. Mas há algum tempo venho pensando que esse negócio de casar ou comprar uma bicicleta é uma coisa séria. E comecei a observar as vantagens e desvantagens de um e de outro. O fato é que talvez a vantagem de um seja exatamente a desvantagem do outro. Vamos lá. Casar = convenção, comodidade, estabilidade, aconchego, posse, intimidade, compra do carro, férias no Guarujá, pagamento da mensalidade do colégio dos filhos, dentre outras questões. Comprar uma bicicleta (mas aqui quero que você pense que esse simples veículo ecologicamente correto vai de te levar o mais longe que suas pernas puderem pedalar) = liberdade, medo do desconhecido, falta de referências, conhecer pessoas e culturas diferentes, desamparo, cansaço, fome, instinto de sobrevivência, entrar em contato consigo mesmo. E então? Já tem a resposta? Quer casar ou comprar uma bicicleta?

Sei que é uma questão difícil de ser respondida, assim, na lata. Não posso ter um pouquinho dos dois?, você deve estar se perguntando. Acredito que sim. Sempre acredito no equilíbrio das coisas. Mas acontece que, muitas vezes, não conseguimos conciliar esses dois extremos. Então nossa bicicleta vai ficando de lado, enferrujadinha, coitada... só saindo de lá praquele raro passeio uma vez a cada seis meses no Ibirapuera.

Diferente do que aconteceu com a personagem da música de hoje, que parou do lado de lá, voltou pela contramão, de costas pro mundo. Se você é fã de MPB, já sabe de quem eu estou falando. E para quem diz que a nossa música é um saco de velharias, Fernanda Porto está aí para provar o contrário, trazendo uma cara nova para a música brasileira, com sua mistura de bossa eletrônica e drum n' bass.

De Costas Pro Mundo é a primeira faixa do primeiro disco da carreira de Fernanda Porto. O disco que tem o nome da cantora foi gravado em 2002, alçando Fernanda ao estrelato nacional por causa da regravação da música Só Tinha Que Ser Com Você do Tom Jobim que fazia parte da trilha sonora da novela Um Anjo Caiu do Céu.

Fernanda Porto tem uma explicação curiosa para a composição de De Costas Pro Mundo: "Essa música era uma bossa-nova, que fiz há muito tempo. Estava dançando com meu namorado numa festa e fiquei apaixonada por outro cara, ali mesmo. Aí voltei para casa e compus inspirada no outro. Escolhi bossa, que é baixinho, para o meu namorado não ouvir".

Achei fascinante essa situação e me identifiquei de cara. Quem é que nunca passou por isso? Citando outro dito popular, quem é que nunca ficou irritado porque levou ‘bolo pra festa’? As situações são muitas e variadas: um estranho numa balada ou num restaurante com quem você cruza ‘acidentalmente’ quando está indo ao toalete; ou mesmo um amigo do marido, seu conhecido há anos, que de repente você começa a ver com outros olhos porque acha que ele está diferente. Não, ele não está diferente. O que está mudada é a situação em si. Sua prisão doméstica e abafada faz com que qualquer ventinho pareça um tornado de proporções catastróficas. Falando nisso, me vem à cabeça várias anti-heroínas da literatura, desde Emma Bovary já citada aqui mesmo neste espaço à Irina McGovern do contemporâneo O Mundo Pós-Aniversário. Mas para mim, a personagem que mais exemplifica, essa mulher sem vocação para o tédio da relação a dois se chama Helena e mora no Leblon. Não, isso não é uma piadinha infame. Helena, personagem escrita por Manoel Carlos para a novela Mulheres Apaixonadas e interpretada magistralmente por Christiane Torloni era uma mulher aventureira, sexual e sem talento algum para o morno. Para quem acha que novela é somente entretenimento para os alienados, sugiro uma rápida passada por aqui. Descontada a baixa qualidade do vídeo que tem pouco mais de cinco minutos, espero que você o assista até o fim para ouvir frases do tipo: ‘Talvez eu não tenha vocação para a fidelidade’. ‘Sou mesmo uma anti-heroína, aquela que não dá lição de moral no final da história e que é até capaz de alguns deslizes pra ser feliz’. ‘É incrível como se pode trair mesmo se amando muito. Vai ver é porque o amor não tem nada a ver com fidelidade.’ Tudo isso dito pela protagonista da novela no horário de maior audiência da TV aberta! Uma salva de palmas para o Maneco!

De volta à letra da nossa música de hoje, o que Fernanda Porto nos diz é que, de certa maneira esse jogo de adultos pode ter conseqüências sérias e é preciso também ser adulto para poder arcar com elas, saber que você pode parar do lado de lá, voltar pela contramão, já que os adúlteros nem sempre são bem compreendidos. O estabelecido é uma relação monogâmica entre duas pessoas. Até mesmo nas nossas canções, se formos analisar, 90% das letras vão falar de juras de amor eterno e poucos compositores se atreveram a ser um pouco mais ousados nessa questão. Cito como exemplo de nota dissonante, nosso querido Raulzito, que compôs uma música (A maçã) só para falar sobre o tema : ‘Se esse amor for ficar entre nós dois, vai ser tão pobre, amor/ Vai se gastar’, ‘Amor só dura em liberdade/O ciúme é só vaidade/Sofro, mas eu vou te libertar/ O que que eu quero se eu te privo do que eu mais venero que é a beleza de deitar?’

Uma ‘traição’ ou uma puladinha de cerca, dê o nome que lhe convier, talvez não seja um ato tão banal assim. Como diria Guilherme Arantes: ‘Pra que tanta loucura por tão pouca aventura?’ Eu te respondo pra quê, Guilherme. Pra se sentir vivo, para estar perto do fogo. É por isso que damos um salto mortal e nos largamos do avião sem pára-quedas ou rede de proteção. Afinal de contas, o ser humano é uma raça teimosa e quando sente bem de perto a baforada da morte, aí é que tem mais vontade de viver. Como diria Marina Lima: ‘À beira do abismo, queira ou não queira, estamos prestes a voar. ’ E aqui não falo exclusivamente de uma relação afetiva. Andar de bicicleta não é a escolha simplista entre fidelidade e infidelidade. Quando me referi a essa metáfora no início do texto, falava antes do poder do livre-arbítrio, do direito às incertezas. Como canta Moska em Móbile no Furacão: ‘Somente eu posso saber o que me faz feliz’. Concordo com ele e acho que as estruturas, de uma forma geral, precisam ser balançadas, é necessário experimentar um caminho diferente vez por outra. Ou então transformar essa pulsão por mudanças em arte. Como fez a própria Fernanda Porto, que nunca mais deve ter visto o rapaz que a deixou tão inspirada a ponto de fazê-la compor uma música.

Dedico este post a F.M., a adúltera mais doce que eu conheço.


De Costas Pro Mundo

Composição: Fernanda Porto

Fugir com você eu quero
Largar tudo e parar por ai
Nem que eu pare do lado de lá
e volte pela contramão...

Eu tô chegando
Eu jogo a moeda na mão
É cara ou coroa, nem sei
se é para ir ou não ir

Eu tô chegando
Um giro, um salto mortal
Me larguei do avião
cai bem perto de você

Eu tô chegando
De costas para o mundo, eu sei

O mundo que vire pra lá

O mundo que gire de novo



segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Café sem açúcar



Começou numa sessão de cinema. A história até nem era nada demais. E na seqüência teve um telefonema falando de coincidências astrais. Tantos planetas parecidos e nada disso parecia em vão. Versos soprados bem junto ao ouvido. Era o início de uma nova paixão.

A cena descrita acima lhe é familiar? Não precisa ser exatamente numa sessão de cinema, mas se bem que não é nada mau para o começo de uma relação o escurinho do cinema. Uma mão boba aqui, uma pegada mais forte acolá. De preferência com a sala vazia para não ter que escutar reclamação do vizinho de poltrona que pagou pelo ingresso e tem todo o direito de assistir ao filme sem ser incomodado. Afinal de contas, sala de cinema é para ver filmes e não namorar, certo? Há controvérsias... Os apaixonados que o digam, pois quando se está apaixonado, você enxerga tudo de um ponto de vista diferente, que é aquele ponto de vista que só interessa a você. Ficamos egoisticamente bobos, achando que o mundo gira ao nosso redor. E a pele melhora, e o cabelo brilha, e os beijos intermináveis fazem com que os olhos mudem de cor. Interessante notar que, segundo a tradicional e milenar medicina chinesa, a idade das pessoas é medida pelo brilho dos olhos. Acho isso fascinante, pois como já disse o Léo Jaime, envelhecer é esvaziar-se de desejo e esvaziando-se de desejo, perdemos o brilho dos olhos.


Do outro lado da moeda, há quem faça apologia a sentimentos mais brandos como uma velha senhora italiana centenária, exemplo de vitalidade que ao ser perguntada sobre o seu segredo de longevidade e boa saúde, disse que era só seguir três regrinhas básicas: comer pouco, não ter arrependimentos e não casar. Na mesma linha de raciocínio, o filósofo francês André Comte-Sponville no seu livro A Felicidade, Desesperadamente nos alerta sobre os perigos do desejo. Segundo Comte-Sponville, que parte de vários preceitos da filosofia clássica e moderna, inclusive um do próprio Buda que diz que ‘todo sofrimento nasce do desejo’, quem espera nem sempre alcança. A falta é o combustível do desejo e toda vez que alcançamos uma meta, nos saciamos rapidamente e já caímos num vazio à procura do próximo objeto nem tão inatingível assim. O autor cita como exemplo aquela criança que, dois meses antes, já começa a perguntar pelos pais da bicicleta que irá ganhar no dia de natal. O tão sonhado dia chega e o que acontece? Ela dá voltas e mais voltas em seu sonho materializado para logo se sentir enfastiada, deixar o veículo de lado, ir para um canto e pegar birra. Os pais decepcionados com o filho, colocam-no de castigo para ver se ele aprende a ser menos mimado. Mas o que esses pais não sabem é que essa criança está apenas exercitando um comportamento que irá repetir durante toda a vida adulta. Comportamento que eles, inclusive repetem todos os dias, quando acordam de manhã e se olham sem se verem. Cadê aquela paixão toda? Afinal de contas, eles não se escolheram? Não deveriam estar em êxtase por estar vivendo ao lado daquela pessoa por quem juraram amor e fidelidade eternas? O contrário da paixão talvez seja a rotina, que como diria minha amiga Babi, é o facão do amor. E é sobre esse facão afiado que a música de hoje fala.

Muitas músicas brasileiras já cantaram esse sentimento que tentamos evitar ao máximo. Ana Carolina em O Rio (Nós dois que sequer nos parecemos/E não cabemos no mesmo espelho/Mas nos olhamos toda manhã), Cazuza em O Nosso Amor a Gente Inventa (Te ver não é mais tão bacana quanto a semana passada/Você nem arrumou a cama/Parece que fugiu de casa), Caetano Veloso em Eclipse Oculto (Tipo de amor que não pode dar certo sob a luz da manhã e desperdiçamos os blues do Djavan) e Kid Abelha em Grand’Hotel (O nosso amor se transformou em bom dia/Qual o segredo da felicidade?/Será preciso ficar só pra se viver?) sem contar em Cotidiano de Chico Buarque que talvez seja a mais célebre de nossas canções a constatar a mesmice do dia-a-dia. Mas escolhi especificamente essa música porque acho que, apesar do lamento dos dias iguais, seu letrista consegue acrescentar uma busca por sabedoria nessa relação sem novidades.

Estou falando de Por Onde Andei, música composta por um dos maiores letristas do nosso pop, Nando Reis, e gravada pelo ruivo nos CDs MTV ao Vivo de 2005 e Luau MTV de 2006.


A maneira como Nando abre a música é genial pois, quando fala ‘Desculpa, estou um pouco atrasado, mas espero que ainda dê tempo’, imediatamente qualquer pessoa assimila esse trecho como uma situação corriqueira de atraso, alguém que ficou preso no trânsito, que perdeu o horário. Mas logo em seguida, Nando tasca ‘de dizer que andei errado e eu entendo as suas queixas tão justificáveis e a falta que eu fiz nessa semana, coisas que pareceriam óbvias até pruma criança’. Ou seja, ele já abre a canção com essa dubiedade que é tão interessante. O interlocutor pede desculpas pelo atraso, algo que cria uma identificação com qualquer pessoa que já passou por esse momento tão banal e ao mesmo tempo constrangedor, para logo em seguida a letra desembocar em algo mais grandioso, uma relação pré-existente onde quem pede desculpas está se martirizando pela sua ausência na vida daquela pessoa e não só por aquele atraso em questão.


Logo em seguida vem o trecho:
Por onde andei/Enquanto você me procurava/E o que eu te dei/Foi muito pouco ou quase nada/E o que eu deixei/Algumas roupas penduradas/Será que eu sei que você é mesmo tudo aquilo que me faltava?

Nessa parte, acho que o facão da rotina corta sem dó nem piedade a relação a dois. Diferente do que Vanessa da Mata canta em Boa Sorte, quando diz que o bom encontro é de dois, aqui Nando fala de uma relação de uma via só, uma relação onde não existe troca; uma relação onde quem dá, recebe de volta a indiferença, o muito pouco ou o quase nada. Não há surpresas, só o óbvio da obrigação que ele deixou para o outro fazer, as tais roupas penduradas. Tudo isso dito na primeira pessoa mostra que o letrista faz a mea culpa e num processo de olhar para dentro, tem a consciência de que ele estava distante no momento em que a outra pessoa o procurava. E termina o refrão com uma frase dilacerante: Será que eu sei que você é mesmo tudo aquilo que me faltava? Nessa eterna e desequilibrada busca de encontrar alguém que nos complemente, acabamos nos relacionando com pessoas que, à primeira vista, tem todos os requisitos para nos preencher, pois quando estamos apaixonados inventamos um ideal de parceiro que deixa de existir quando é enxergado sob a ótica da convivência diária. Como naquela velha frase: quem ama, ama o amor e não outra pessoa. Discordo em termos dessa frase, porque acho que ela se adequa mais à paixão. E quando a paixão acaba (até os cientistas dão um prazo de validade de dois anos para esse singular sentimento) nos deparamos com nossas idealizações frustradas.

E quando nos frustramos, não nos resta outra possibilidade que não o mundo real. E dessa maneira, Nando continua a canção encaixando na letra, uma situação em que qualquer ser humano se sente desamparado, um choque de realidade na forma do roubo de um automóvel:


Amor eu sinto a sua falta/E a falta é a morte da esperança/Como o dia em que roubaram o seu carro/Deixou uma lembrança/Que a vida é mesmo uma coisa muito frágil/Uma bobagem, uma irrelevância/Diante da eternidade do amor de quem se ama


Ou como disse Renato Russo, em Quase sem Querer, já analisada aqui:
Me disseram que você estava chorando/E foi então que eu percebi como te quero tanto.

Dessa maneira, o autor da canção se redime, pois numa situação limite, seu amor é posto à prova. E com a letra de 2 Namorados da Fernanda Abreu que abriu o post de hoje, também o encerro para dizer que:


A vida sempre tem as suas surpresas. E na verdade o que aconteceu é que, no dia a dia, além das belezas, o que é defeito também apareceu. Um disse ao outro ‘paciência, tenho desejos diferentes dos seus; juntos buscamos a justa ciência de não dizer ao outro um simples adeus’.


Ps.: Sobre o que hoje foi dito, recomendo a leitura de Madame Bovary e o filme 500 dias com ela.


Dedico esse post à Barbara Melo.


Por Onde Andei

Composição: Nando Reis

Desculpe,
estou um pouco atrasado
Mas espero que ainda dê tempo

De dizer que andei errado

E eu entendo
as suas queixas tão justificáveis
E a falta que eu fiz nessa semana

Coisas que pareceriam óbvias até pra uma criança

Por onde andei
enquanto você me procurava?
Será que eu sei
que você é mesmo tudo aquilo que me faltava?
E o que eu deixei?
Algumas roupas penduradas

Será que eu sei
que você é mesmo tudo aquilo que me faltava?


Amor, eu sinto a sua falta

E a falta é a morte da esperança
Como o dia que roubaram o seu carro
Deixou uma lembrança que a vida é mesmo coisa muito frágil
Uma bobagem
, uma irrelevância
Diante da eternidade
do amor de quem se ama

Por onde andei
enquanto você me procurava?
E o que eu te dei foi muito pouco ou quase nada
E o que eu deixei?

Algumas roupas penduradas

Será que eu sei
que você é mesmo tudo aquilo que me faltava?


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Melancolia d'alma


Certo dia, naquele momento corrido do horário de almoço da firma, já na prorrogação do cafezinho, disse brincando que quando morresse, ia querer ver escrito na minha lápide: Acabou o recreio. A afirmação nonsense causou gargalhada, claro. Eu mesmo já cheguei a imaginar, uma viúva de negro da cabeça aos pés, tristíssima, aos prantos, voltando do sepultamento do marido, cujo corpo ainda nem esfriou, quando, de repente, olha para a lápide vizinha e vê o debochado epitáfio. Então, essa viúva tem uma crise de riso tão histérica que sai do cemitério amarrada numa camisa de força sob comentários piedosos: ‘Coitada, não suportou a dor.’ Confesso que saber que causaria estranhamento em alguém mesmo depois de morto é uma idéia que me envaidece. Como já disse o finado Dias Gomes: ‘Se você não veio ao mundo para incomodar, então não deveria ter vindo.’ Mas por outro lado, não sei se esse epitáfio, a última e derradeira frase, seria tão revelador de minha personalidade. Talvez seja leve demais. No meu íntimo, eu sei que eu, assim como todos os meus, carrego a marca da tragédia na alma. E por esse motivo já deixo avisado que quero algo mais fatídico, mais certeiro. Algo como – jurei mentiras e sigo sozinho.

Há quem diga que o brasileiro é um povo alegre. Temos sustentado por séculos esse nosso jeitinho malandro pautado na tríade sexo-mulher-carnaval. Eu tenho cá meus pontos de vista dissonantes. Apesar de toda essa alegria-exportação que vem desde os tempos de Carmem Miranda e de estereótipos como o Zé Carioca da Disney, acho que somos um país de dimensões continentais e um povo muito mais plural e multifacetado do que sonha a nossa vã filosofia. Nem só de ziriguidum vive nossa nação. Exemplos de nossa condição irônica e melancólica é o que não falta na música brasileira. De Chico Buarque (Deus é um cara gozador/Adora brincadeira/Pois pra me botar no mundo/Tinha o mundo inteiro/Mas achou muito engraçado me botar cabreiro/Na barriga da miséria/Nasci brasileiro) à Belchior (Por força desse destino/Um tango argentino/Me cai bem melhor que um blues) várias são as canções que desfiaram a nossa condição de latino-americanos, talvez um tanto deslocados por causa da barreira lingüística, já que somos o único país das Américas que fala português.


Gosto da música de hoje pelo que ela contém de força e, ao mesmo tempo, resignação em sua letra. Sangue Latino de João Ricardo e Paulinho Mendonça nos empurra para frente ao mesmo tempo em que nos traz uma consciência de fragilidade. Essa música foi gravada em 1973, no disco Secos e Molhados. A aparição do grupo foi transgressora para a cena do showbizz brasileiro. Ou você acha que é todo dia que aparece um Ney Matogrosso, performático que só ele, com aquele figurino provocante e aquela maquiagem ousada cantando ‘O Vira’? Se a cena ainda causa incômodo em algumas pessoas mais conservadoras em 2011, imagina no auge dos anos de chumbo da ditadura militar! Mas como diria um amigo meu, Ney chegou chegando e se impôs com sua presença forte e corajosa. Está aí até hoje para provar que é um ARTISTA. Sim, com todas as letras em maiúsculo. Além de ser uma virtuose, um artista visceral e entregue ao seu público, é também um dos mais afinados intérpretes da MPB.


Secos e Molhados (agora falo do disco e não da banda) foi importantíssimo para a formação de um público brasileiro consumidor de rock, pois paralelo ao trabalho dos Mutantes, trazia para a nossa música tupiniquim elementos conhecidos lá fora, mas pouco experimentados aqui como o glam rock e o rock progressivo. Até mesmo a capa do disco foi eleita pela Folha de São Paulo como a melhor de todos os tempos de discos brasileiros.


Voltando à letra, jurar mentiras é um hábito conhecido do povo latino, principalmente daqueles que, de alguma forma se envolveram ativamente na luta por um mundo mais justo e democrático. Os que pegaram em armas, os que se embrenharam em matas desconhecidas treinando táticas de guerrilhas, os que bateram panelas na Plaza de Mayo clamando pelo direito de chorar seus mortos. Essas pessoas sabem muito bem que o mundo não está dividido maquiavelicamente entre o bem e o mal. Ou como diria Caetano, sabem que o mal é bom e o bem, cruel.


E seguir sozinho, antes de ser uma questão latina, é uma condição essencial de todo e qualquer ser humano. Como diz Elisa Lucinda em seu livro Parem de Falar Mal da Rotina: “Sei que viver é uma experiência individual porque é por dentro de cada um que ela passa, a vida. Prova disso é que, sozinhos, enfrentamos o nascimento e a morte. Estamos diante desses eventos ainda que mais gente coadjuve ou figure no ambiente. Mesmo tendo para muitos tanta importância o par, em especial o par romântico, é fundamental nosso autoconhecimento, nossa conversa particular com a gente mesmo.”


E assim brincando de não ser sozinho dentro de tantas solidões, vamos seguindo por caminhos tortos como os personagens do livro Cem Anos de Solidão do Gabriel Garcia Marquez. A saga secular dos Buendia é uma metáfora das ditaduras latino-americanas, dizem alguns. Pode até ser. Mas o que mais me impressiona nesse livro é a força e a estranheza de cada personagem, seres fantásticos e tão reais. Li o livro anos atrás, mas alguns personagens são tão marcantes que até hoje não consigo tirá-los da memória. Aureliano Buendia, José Arcádio e principalmente, Úrsula, a matriarca da família, uma mulher sólida como uma rocha, conformada com o mundo de homens desvairados que a cercam.


Tenho certeza que, assim como eu, você conhece várias Úrsulas por aí. Ela pode ser sua mãe, tia, avó, irmã. Úrsula é toda a mulher que um dia perdeu uma promoção no trabalho para cuidar das filhas que estavam com catapora. É a mulher que criou os filhos sozinha enquanto o marido tinha a mania de devaneios, ou como diria Belchior em À Palo Seco, já citada aqui: é aquela pessoa que se desesperava no tempo em que você sonhava. Mulheres cativas, mas jamais vencidas. Pois como diria o mais icônico de nossos revolucionários: "Déjeme decirle, a riesgo de parecer ridículo, que el revolucionario verdadero está guiado por grandes sentimientos de amor.."


Ps.1: Sangue Latino foi gravada pela banda gaúcha Nenhum de Nós, por Renata Arruda, Vânia Abreu e Nando Reis.

Ps. 2: Garcia Marquez já recebeu algumas propostas milionárias de estúdios de Hollywood para vender os direitos da obra Cem Anos de Solidão. Nunca aceitou, segundo ele, para não estragar a capacidade de imaginação dos leitores.


Sangue Latino

Secos e Molhados

Composição: João Ricardo / Paulinho Mendonça


Jurei mentiras

E sigo sozinho

Assumo os pecados

Os ventos do norte

Não movem moinhos

E o que me resta É só um gemido...
Minha vida, meus mortos

Meus caminhos tortos

Meu Sangue Latino

Minh'alma cativa...

Rompi tratados

Traí os ritos

Quebrei a lança

Lancei no espaço
Um grito, um desabafo...

E o que me importa

É não estar vencido

Minha vida, meus mortos

Meus caminhos tortos

Meu Sangue Latino

Minh'alma cativa...


Dedico este post à Marizabel Pacheco.




sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

See more...



"Cantar é rezar duas vezes" dizia Santo Agostinho. Se for verdade o que disse o mais filosófico dos santos, então acho que sou uma das pessoas mais religiosas do planeta. Pois vivo cantando. E canto para não tombar. Ou como dizem os mexicanos quando passam por um mau momento, no me voy a quebrar. E foi justamente para não me deixar cair que cantei ou mesmo recitei essa música em alguns momentos cruciais da minha vida. Às duas da manhã, na cozinha, bêbado, com amigos mais bêbados que eu. Ou baixinho no chuveiro, deixando a lágrima escorrer junto com a água quente. Vai ver que é minha sina andar distraído, impaciente e indeciso. Hoje sigo adiante, ainda confuso, mas tão tranqüilo e tão contente.

Se você é fã da Legião Urbana, já sabe qual é a música que tentarei decifrar hoje aqui. Difícil essa minha missão. Diria quase impossível. Me rendo à Esfinge e me deixo ser devorado.

Renato Russo, ao lado do Cazuza, foi um dos maiores letristas do rock nacional, uma espécie de Rimbaud tupiniquim pós-punk. Gosto muito da figura do Renato, dessa coisa que ele mesmo rejeitava de ser um messias daquela geração perdida. A história de Renato começa bem antes do estouro do primeiro disco da Legião Urbana. Começa em Brasília com o Aborto Elétrico e continua com uma fase solo mais lírica em que ele se auto-intitulava O Trovador Solitário. Renato foi um gênio, um cara que escrevia canções de amor, de cunho político, satíricas, engraçadas, todas com a mesma competência. Um ídolo amado por milhões, mas que se queixava de ir para o quarto de hotel sozinho. A metralhadora giratória que atirava para todos os lados. A criança que não tinha medo do escuro, mas pedia para deixar as luzes acesas. O cantor de voz grave e tocante que, mesmo contra todos os avisos de sua gravadora de que Laura Pausini era a Sandy italiana, gravou La Solitude. O artista sensível que ao gravar um disco que homenageava o levante de Stonewall, escolheu canções tão singulares quanto Send in the Clowns do espetáculo A Little Night Music da Broadway à Cherish da Madonna (sim, aquela mesma do clip com os sereios sarados). Renato foi um visionário, alguém que via o que quase ninguém via. E como acontece com os bons, morreu jovem.

Tenho andado distraído, impaciente e indeciso/Ainda estou confuso/Só que agora é diferente/Estou tão tranqüilo e tão contente.

Quase sem Querer do Disco Dois tem sido o meu 'I Will Survive' pessoal porque tudo na letra dessa música me diz que eu tenho que seguir adiante, mesmo que eu não saiba para onde eu esteja indo, como em outra música da Legião, Só por hoje (que ganhou esse título por causa do lema dos Alcoólicos e Narcóticos Anônimos): Não sei pra onde estou indo/Só sei que não estou perdido.

Quantas chances desperdicei/quando o que eu mais queria/era provar pra todo mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém

E você tem desperdiçado muitas chances? Já se olhou no espelho hoje e percebeu que o seu maior inimigo é você que criou um rótulo de si mesmo e agora está preso dentro dele? Você que se inventa moderno, que entende tudo de cinema alternativo. Ou você que se inventa livre demais e sai por aí com uma bata branca e uma sandália rasteira, falando coisas tão profundas quanto ‘comi capim cidreira no campo e lembrei-me de vovó, tempo de uma infância feliz onde a carne da galinha não tinha hormônio’. Já parou para pensar que a energia gasta na construção dessa sua pseudo-imagem seria mais bem utilizada se você fosse apenas o que é de verdade? O problema é que não queremos nos desamparar demais. Por isso é bom fazer parte de uma tribo, sempre tem uma muletinha por perto, alguém que vai rir das nossas piadas sem graça.

Me fiz em mil pedaços/Pra você juntar/E queria sempre achar explicação pro que eu sentia/Como um anjo caído fiz questão de esquecer/Que mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira/Mas não sou mais tão criança/A ponto de saber tudo

Quem é que nunca se quebrou em mil caquinhos para que fosse colado por outra pessoa? Que se olhou no espelho enquanto as lágrimas escorriam e achou linda aquela dor profunda? Os casos são muitos, meus ou de amigos próximos. Um amigo sabendo que o namorado ia terminar a relação, tomou uma superdose de Dramin no momento em que subia o elevador do prédio dele, para desmaiar exatamente no momento em que ouvisse o veredicto sobre o ponto final. Tem também outra amiga que falou que tinha comprado uma arma e que ia matar a nova namorada do ex. Casos e mais casos de pessoas que se esqueceram da auto-estima e se tornaram sombras daquela pessoa alegre que um dia foram no início da relação. Se espelharam demais numa imagem que não mais os refletiam. Mas chega o dia em que toda pessoa de mente sã, resolve recomeçar e descobre que o mundo não gira mais em torno do seu umbigo. Como adultos e não como crianças que vão ganhar um pirulito se pararem de chorar.

Já não me preocupo se eu não sei por que/Às vezes o que eu vejo quase ninguém vê/Eu sei que você sabe quase sem querer/Que eu vejo o mesmo que você

Enxergar além talvez seja um fardo. Sempre penso na felicidade do alienado. Será que ele é mesmo feliz? Ou será que ele só varre a sujeira para debaixo do tapete? Mas eis que chega o dia em que o alienado não dá mais conta de tanto pó acumulado que, com o passar dos anos, acabou se transformando num câncer. Nesse ponto, sou partidário da filósofa Márcia Tiburi e deixo solta a pergunta: Por que as pessoas não se enfrentam com a dureza da experiência de viver? Um dos meus autores favoritos, J. D. Salinger, cuja obra mais conhecida é O Apanhador no Campo de Centeio, escreveu uma novela notável chamada Seymor: uma apresentação. Nessa novela, o personagem Buddy Glass descreve em detalhes a personalidade física e psicológica do irmão Seymor que, em inglês se pronuncia see more (ver mais) insinuando sua condição de vidente. Quando a história começa Seymor já está morto, pois cometeu suicídio, o que nos leva a uma outra questão: será que aqueles que enxergam mais não agüentam o peso da vida? Recomendo fortemente o livro, assim como toda obra de Salinger.

Tão correto e tão bonito/O infinito é realmente um dos deuses mais lindos

Nesse momento, a letra nos remete a uma indefinição de espaço e tempo, celebrando o Infinito, como um dos deuses mais lindos. Como Renato cantaria mais tarde em Pais e Filhos, somos um grão de areia. Um grão de areia perdido num universo de infinitas possibilidades. E por isso continuamos seguindo, distraídos, impacientes, indecisos, confusos, mas tranqüilos porque temos (ou esperamos ter) essa consciência de nossa pequenez. Eu sei que nada sei.

Esse foi o post mais trabalhoso do blog até agora. Essa letra é muito cascuda. Pensei em desistir em alguns momentos quando vi onde tinha me metido, até porque, como conversei com um colega, ela é muito subjetiva. Você verá que alguns trechos não foram comentados, fique à vontade se quiser contribuir com esse novíssimo blogueiro. Sua contribuição pode enriquecer nossos debates. Além da Legião Urbana, gravaram Quase sem Querer, Zélia Duncan e Maria Gadu.

Dedico este post a Luciano Falcão e Mariposa Apaixonada de Guadalupe, duas pessoas que vêem o que quase ninguém vê.

Quase Sem Querer

Legião Urbana

Composição: Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Renato Rocha

Tenho andado distraído,
Impaciente e indeciso
E ainda estou confuso,
Só que agora é diferente:
Estou tão tranqüilo e tão contente.
Quantas chances desperdicei,
Quando o que eu mais queria
Era provar pra todo o mundo
Que eu não precisava
Provar nada pra ninguém?!...
Me fiz em mil pedaços
Pra você juntar
E queria sempre achar
Explicação pro que eu sentia.
Como um anjo caído
Fiz questão de esquecer
Que mentir pra si mesmo
É sempre a pior mentira,
Mas não sou mais
Tão criança a ponto de saber tudo.
Já não me preocupo se eu não sei por que.
Às vezes, o que eu vejo, quase ninguém vê
E eu sei que você sabe, quase sem querer
Que eu vejo o mesmo que você.
Tão correto e tão bonito;
O infinito é realmente
Um dos deuses mais lindos!
Sei que, às vezes, uso
Palavras repetidas,
Mas quais são as palavras
Que nunca são ditas?
Me disseram que você
Estava chorando
E foi então que eu percebi
Como lhe quero tanto.
Já não me preocupo se eu não sei por que.
Às vezes, o que eu vejo, quase ninguém vê
E eu sei que você sabe, quase sem querer
Que eu quero o mesmo que você.





terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Dizer não é dizer sim?



A história que você lerá a seguir é mais uma história de desencontro. Mais uma dentre tantas que você já viveu ou ouvir dizer. Afinal, dizem tanto por aí e como já cantou Fernanda Abreu, um desencontro na cidade é coisa mais do que comum.

Essa é a história de Rodrigo e Reinaldo. Rodrigo tinha 23 anos quando tudo aconteceu. Reinaldo, 32. Rodrigo estava no último ano da faculdade de Artes Cênicas em Ouro Preto e tinha todos os sonhos na cabeça, iria se formar e ir para o Rio de Janeiro, ser ator de televisão. Reinaldo, já tinha uma vida estável, era presidente de uma multinacional alemã com sede em Belo Horizonte. Se conheceram na Josefine, uma boate gay. Era a primeira vez na vida que Rodrigo ia a uma boate gay. Não tinha noção de como seria. Era o grande deslumbramento do menino do interior pela primeira vez numa balada GLS. Reinaldo era freqüentador assíduo do lugar, batia ponto final de semana sim, outro também. Tudo começou com um roçar de braços. No fim da noite, Renato estava insistindo para que Rodrigo dormisse em sua casa. Rodrigo, ressabiado, disse que tinha que ir embora, pois estava na casa da tia e ela ficaria preocupada. Reinaldo então deixou Rodrigo na frente do prédio da tia. Pediu um beijo. “Aqui em frente não, o porteiro vai ver”. Se despediram e trocaram telefone.

Rodrigo havia sido picado pela droga do amor. E achava que Reinaldo também, pois ele havia dado todos os indícios disso. Porém algo terrível aconteceu. Rodrigo recebeu uma ligação da irmã. O avô havia morrido. Deveriam ir para a cidade natal, ficar ao lado da mãe. No meio de toda aquela tristeza, Rodrigo se sentia culpado por só ter vontade de voar para bem longe dali e rever Reinaldo. Mal o corpo do avô esfriou no caixão, inventou uma história para mãe, tinha uma prova na faculdade para fazer, e foi embora. Quem o avô dele pensava que era para morrer bem na hora em que ele se apaixonava pela primeira vez?

Chegou em Belo Horizonte. Procurou por Reinaldo. Estava decidido. Ele morava em Ouro Preto, há duas horas de ônibus, se veriam todo final de semana. Reinaldo disse que já tinha vivido uma experiência parecida e aquilo não havia dado certo. Mas Rodrigo não entendeu. Aquilo que ele sentia era AMOR. E se fosse possível, ele atravessaria o Atlântico todos os dias para viver aquele amor. O que Rodrigo não entendia naquela época é que aquele sentimento só era possível porque tinha algo de inédito, de novidade, de frescor que só é possível quando se vive aquela experiência pela primeira vez. Reinaldo, por sua vez, já era velho de guerra, já tinha na cara todas as cicatrizes dos relacionamentos anteriores, que ele carregava, não sem um certo constrangimento. Constrangimento esse que, escancarava para quem quisesse ver, a perda de uma espontaneidade, espontaneidade esta que só é peculiar aos que são jovens, de corpo e de alma. Se despediram. Nunca mais se viram. Na lembrança de Rodrigo, ficou o cheiro do hálito de Renato. Trident de canela.

Começo o post de hoje com essa história para ilustrar um dos temas da música do dia: a perda da nossa espontaneidade que é ocasionada pelo excesso de racionalidade toda vez que começamos um relacionamento. Quanto mais experientes ficamos no campo sentimental, menos espontâneos nos tornamos porque passamos a pensar em tudo o que deu errado nas relações anteriores. Então, por uma análise meio sem sentido, começamos a nos corrigir internamente, para não repetirmos os mesmos erros. Como se isso fosse possível. Como se cada pessoa não fosse um ser único e indivisível. Como se cada soma de você com outro não fosse diferente da soma de você com aquele outro. Por mais repetidos que sejam nossos padrões de comportamento – e tendemos muito a essas repetições – ficar preso à essas análises de certo e errado só vai nos levar a sofrer mais ainda, ou por pré-ocupação, ou pela eterna síndrome do ‘E se...’.

Difícil é o nome da música. E ela foi gravada pela primeira vez pela Marina Lima em 1985 no álbum Todas. Naquela época Marina Lima era apenas Marina. Depois, já Marina Lima, ela regravou essa mesma música com uma roupagem mais moderna em 2006 no álbum Lá nos Primórdios. Preciso dizer que sou fã de carteirinha de Marina, que tem a fama de ser a nossa cantora mais cool e não é por acaso. Como a própria Marina gosta de dizer, ela não tem raízes, tem antenas. E eu não tenho dúvida disso. Basta escutar Acontecimentos e Não Sei Dançar, duas das faixas do álbum Marina Lima de 1991 e ver como aquela sonoridade até hoje é moderna. Ou então todas as faixas do seu disco seguinte, O Chamado, para ter certeza, de como ela estava anos-luz à frente da nossa MPB tradicional. As letras, as batidas das músicas,o visual modernérrimo na capa do disco. Aquela foto de perfil com aquele rabo de cavalo é o supra-sumo do chic.

Voltando à Difícil, a música começa da seguinte maneira: Eu disse não/Ela não ouvia/ Mandei um sim/Logo serviu/Então pensei/Ela é bela/Por que não com ela?/Sexo é bom.

Logo de cara, Marina e Antonio Cícero, seu irmão e um dos grandes parceiros de sua carreira, já nos apresentam uma letra ousada, um jogo que também ganha quem perde, já que o sexo é a rendição. E, neste caso, o sexo é bom!

Em seguida vem o trecho que é o centro da discussão de hoje e que acho simplesmente genial: Mas acontece que eu/Tenho esse vício de gente difícil no amor/Alguém lá no início me aplicou/E me fez louca/Me fez pouca/Me fez o que sou/Difícil. E acho que é isso mesmo que acontece com todos nós. Sempre que entramos com o peito aberto para um novo relacionamento, não somos só nós e o outro que estão ali, mas sim todos os relacionamentos que tivemos antes. É como se fossemos um papel amassado ou rascunhado, cheio de histórias que deram certo ou errado. E toda essa experiência ou falta dela é evidenciada no começo de qualquer relação. Quanto mais experiente você é, mais difícil fica ser espontâneo.

Mas o fato é que se nos perguntassem se a gente recomendaria a tal da paixão, não pensaríamos duas vezes em dizer: SIM!!!! Porque como acabo de ver e curtir no mural de uma amiga no facebook “"Eu vou procurar um jeito de não padecer... mas não vou deixar a vida sem viver" Ou como diz a própria canção: Paixão e gozo/Cê sabe, isso vicia. Ô, e se vicia!

Difícil
Marina Lima
Composição: Marina Lima/Antonio Cicero

Eu disse não
Ela não ouvia
Mandei um sim
Logo serviu
Então pensei
Ela é bela
Por que não com ela?
Sexo é bom

Mas acontece que eu
Tenho esse vício
De gente difícil no amor
Alguém lá no início
Me aplicou
E me fez louca
Me fez pouca
Me fez o que sou
Difícil!
Nem sempre

Nem interessa
Se eu recomendaria
É tão depressa
Nem quero pensar
Quando a picada vem

Mas paixão e gozo
Cê sabe, isso vicia
"Aí garota, eu gosto assim"
Difícil

Ps.1: Um bom filme para pensar sobre o que foi dito neste post é
Ele não está tão a fim de você.

Ps.2: Dedico este post à Tatiana Ribeiro que tem esse vício de gente difícil no amor.